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Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Há um funeral na minha cabeça e não sei o que vestir

Há um funeral na minha cabeça. Constante e repetido, como o soar dos sinos a cada hora de cada dia.

É como um velório em dia de chuva, quando a água não vem para lavar almas, mas para derrocar os poucos que permanecem de pé. Já foram a um velório à chuva? É como se o dia se vestisse a rigor, e as nuvens pesassem mais que todos os corações carregados daquela dor, que só é comparável à dos que acompanham o enterro seguinte.

Há um funeral na minha cabeça, e não sei o que vestir. 

Quero vestir-me de amarelo e levar sandálias, mesmo com o tempo nublado. Mesmo que o cheiro a terra molhada se me entranhe os pés e a vida. Não quero guarda-chuva, nem agasalho. Também não quero chorar, se não sei quem choro.

Não há mortos, missas de corpo presente ou de sétimo dia. Mas há um funeral na minha cabeça. Como um ritual inventado para me fazer duvidar, definhar. 

Não há-de tardar.

Hei-de pegar no vestido e nas sandálias, e fazer do funeral uma festa.

 

 

Corredores estreitos fazem bons ciclistas

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Nas traseiras da casa da minha avó existe um corredor muito estreito. Tão estreito, que de braços abertos tocamos as duas paredes rugosas. Foi nesse corredor que passei grande parte da minha infância. A correr, a esfolar joelhos, a encarnar o Mourinho e a dizer aos meus primos como é que deviam jogar futebol. 

Certo Natal, os meus pais ofereceram-me uma bicicleta. Com rodinhas, que a propensão para esfolar joelhos já era inata, e não precisava de incentivo. Passava as tardes, para cá e para lá, na minha bicicleta azul, sem cestinho. Ainda hoje não lhes perdoei a falta do cesto. Onde é que uma mulher guarda os pertences quando vai dar uma volta ao corredor? 

Cada vez que chegava ao fim do caminho tinha de sair da bicicleta, levantá-la no ar, girá-la com cuidado para não lascar a tinta nas paredes, e seguir viagem, numa inversão de marcha feita à mão. Era mesmo, mesmo estreito.

Um dia, num acto de rebelião contra a opressão das rodinhas, chamei o filho da vizinha.

"Arranca-me lá isto daqui."

Embriegado pela sensação de poder que uma chave de fendas conferia a um miúdo de 8 anos, nem questionou se o que iria arrancar a seguir, seria a minha cara do chão. Fez-me a vontade. Ajudou-me a equilibrar-me, agarrou o selim até ordem contrária, empurrou-me ao de leve, e lá fui eu. 

Não demorou para percebermos que, com rodinhas ou sem rodinhas, despistar-me era uma missão impossível. Se me desiquilibrasse para a esquerda, uma parede agarrava-me. Se me desiquilibrasse para a direita, a outra parede também. Era o pesadelo de qualquer dentista.

Hoje, aquele corredor parece-me ainda mais pequeno, encolhido pelo tempo que passou por ele, e lhe levou as crianças e a tinta, que descasca a cada chuvada mais forte. São só duas paredes que ligam vidas vizinhas, e que estarão sempre ligadas à minha. É também uma metáfora perfeita do que aquele lugar reprensenta para mim.

Por muito que a vida me desiquilibre, ou que eu me desiquilibre com ela, ninguém ali me deixa cair. E se as forças me faltarem, braços não faltarão para me empurrarem em frente.

É um corredor estreito. Desagua numa imensurável largura de amor.

 

Era julho e ele prometeu-me

O meu avô tinha os olhos cor de amêndoa e as mãos ásperas, de dar arrepios. A vida de trabalho no campo tornou-o rígido, mas nunca amargo. Era doce. Como pêssegos no pico do verão. Quando se zangava, arregalava os olhos, como quem diz, sem dizer, "Queres ter problemas?" Não queríamos, obrigadinha. E cada um ia à sua vida, com a auréola de volta ao cocoruto.

Ensinou-me a nadar numa manhã de julho.

"Não te rales, que o avô não te larga."

Quando julho chega, as piscinas abrem, e os miúdos fazem procissões de mochila às costas, lembro-me dele. De quando fazíamos o mesmo caminho pela fresca, mala numa mão, eu na outra. 

"Cuidado com os carros. Anda pela beirinha."

O senhor ao portão a dizer para entrar, que filho da terra não paga. E a neta também não. O cheiro a cloro quando nos separávamos à entrada dos balneários, e o reencontro em frente ao mar azul que se podia arranjar.

Contou esta história até ao fim dos seus dias. Orgulhoso por me ter ensinado. Como se a sua existência precisasse de mais dádivas e não se sobrasse nela própria. De caminho, cumpriu pela vida toda, a promessa que me fez naquela manhã de verão. 

"O avô não te larga."

E nunca largou.

 

 

A minha mente chamou-me

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Chega aqui. Senta-te um bocadinho, que pareces cansada. Essa tua mania de te preocupares com cada minuto que não controlas, com cada passo que não dás com os teus pés, vai-te matar. Sabes disso, não sabes? Bem sei, bem sei. Sou eu que te conto coisas aos ouvidos. Que te digo que vai correr mal, e que as pessoas não gostam de ti. Mas, e então? Quem é que te fez tão insegura?

Deixa-te estar. Não vás já. Bebe um copo de água, e relaxa esses ombros. Sempre encolhidos, tolhidos, como se alguém te fosse atacar. Como se te tivesses de defender de alguma coisa. Irrita-me, que não saibas ter calma. Se te enervo? Enervo. Exijo-te alerta máximo a cada momento da tua existência, porque, minha menina, a vida não é fácil. Mas, e depois? Tens de ser assim tão fraca?

Não chores. Toma lá um lenço, vá. Não podes estar sempre a derramar lágrimas como se isto fosse uma tragédia. Certo. Não te deixo dormir, e quando me distraio e adormeces, invento pesadelos para acordares aflita. Pensas que és a única a ter pesadelos? Não és. Mas as pessoas acordam e vão à sua vida. Não é o fim do mundo.

Já vais? Pronto. Deixo-te ir. Não quero que digas que te prendo ou massacro. O que te digo é para o teu bem. Vai lá, que já te encontro. Vou estar no mesmo sítio, a contar-te as mentiras do costume.

 

A Senhora que proibiu a Rua Sésamo

A minha bisavó era torta. Andava direita, nós é que a olhávamos sempre de lado. Não era uma senhora doce. Carregava na idade as amarguras do mundo, e fazia questão que todos fôssemos, também, infelizes. Já lhe bastavam as roupas pretas, para fazê-la destuar.

Lembro-me dela como um borrão ao canto da sala dos meus avós. Rodava a casa dos filhos a cada mês, e quando o mês nos calhava, era como se nos preparássemos para uma festa. Mas ao contrário. A minha avó ficava refém da sogra, e a Rua Sésamo refém da censura dela. 

"Põe no noticiário. Baixa o som. A novela já deu?"

Sentava-me no sofá ao lado do cadeirão, o tédio a fazer-me batucar na madeira onde apoiava a cabeça. "Toc. Toc. Toc." Ouvia um suspiro, espreitava discreta, e se aqueles olhos fossem balas, eu não estava cá hoje.

"Oh, 'vó, quando é que a bisavó se vai embora?"

"No fim do mês, se Deus quiser." E eu tinha medo que Deus não quisesse.

Um dia fechou-se na casa de banho. "Mãezinha, não tranque a porta, que depois não a consegue abrir". Pobre avô. Até eu sabia que o melhor era dizer, que se trancasse. "Tranque-se. E de caminho, ponha um banquinho, para ninguém lhe conseguir chegar".

Em poucos minutos havia gritos. "Ai, que a fechadura não abre. Ai, que não saio daqui". O meu avô a mandá-la desviar-se da porta, para arrombá-la, ela a jurar que estava longe. A minha avó empoleirada no tanque de cimento para espreitá-la da janela, a confirmar, "Está colada à ombreira".

"Oh mãe, desvie-se da porta, pelo amor de Deus". 

"Oh filho, qual porta? Estou tão longe."

Foi até lhe dar a fome.

O mês passava tão lento quanto os passos que dava. Fazíamos fila atrás, porque à frente ia ela. Tomava banho cedo, jantava cedo, dormia cedo. Numa rigidez militar, para a qual todos falharam a recruta. A minha esperança chegava quando se ouvia "Já chamaste o carro?"

Ligava a televisão no botão grande, à direita, corria para o cadeirão e sorria. Já podia ver a Rua Sésamo, outra vez.

Os meus pensamentos não batem à porta

Falam muito alto e atropelam-se, como as famílias numerosas. Chegam de repente, como prenúncios do fim do mundo. Não pedem licença, nem autorização de residência. Arrombam a porta e desalinham a vida, como um furacão.

Às vezes demoram-se, e decidem que hoje vai correr tudo mal.

"Não penses que são coisas da tua cabeça. Que são. Mas hás-de ficar sem chão".

Outras vão, como vieram. Num sopro que derruba casas e corações, e deixam para trás o silêncio, que chega sempre, depois da destruição.

Fecho os olhos e respiro fundo. Tanto, como se quisesse açambarcar no peito todo o ar que existe no mundo. Desacelero o coração cansado, que não desiste mas reclama. Deixo o sangue voltar a correr, enquanto  tento apenas caminhar. Um passo de cada vez. Um dia de cada vez.

São eles que me desarrumam. Sou eu que sobro para me arrumar. 

Prenúncio

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Hás-de chegar sem que eu me aperceba.

Leve, como uma brisa. A contrastar com todas as tormentas que desalinharam o meu coração. Vais saber que sou eu, sem que eu adivinhe que, um dia, seremos nós.

Chamarás o rio para servir de testemunha, e assentarás raízes onde as minhas já são fundas. Não me vais querer mudar. E eu, eu vou gostar de ti assim. 

Às vezes, o meu cansaço vai te cansar. Porque me queres bem, e feliz, e sem martírios a ruminar no peito. E eu vou encolher os ombros, e ser triste um bocadinho, porque também é preciso. Uma tristeza velada, atenuada, selada com o teu beijo.

Seguiremos pela vida de dedos e existência entrelaçados. Vamos discurtir, porque dizem que faz parte, e nós não deixamos parte nenhuma por viver. Vamos fazer as pazes, porque para sempre é muito tempo, e ninguém sobrevive ao infinito, zangado.

Um dia, com o Sol a beijar as Lezírias, vais-me olhar de soslaio. Eu vou estar distraída, como daquela vez em que chegaste. E vais sorrir, porque me encontraste. Eu, perdida na minha existência multiplicada, vou continuar a não acreditar na sorte que tive quando decidiste procurar-me.

Hás-de chegar sem que eu me aperceba. É por isso que espero serena.

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O meu avô tinha uma lambreta verde, que um dia pintou à trincha. Ficou um trabalho lindo. Para um cego. Ele encolhia os ombros. O que lhe saía caro em piadas, saía-lhe barato em tinta. Tinha capacete a condizer, verde-esmeralda, de fábrica. Poupou-lhe as pinceladas. Por baixo, duas tiras seguravam-lhe o queixo, que raramente caía. Já tinha visto de tudo.

Eu adorava a lambreta. Quando ela estava parada. Desde miúda, que aquela ideia de fazer piscas com os braços não me parecia genial. 

"E se te desequilibras?"

"Agarra-te ao avô, que não cais."

E isso não me descansava. Porque se ele caísse, caíamos os três. Eu, ele e a lambreta.

A direito a viagem fazia-se. Era nas curvas que me tremiam as pernas. Quando via uma a chegar, fechava os olhos com  muita força, e só não rezava porque não sabia rezar. Sentia o corpo a pender para um lado, depois para o outro. Quando me percebia na vertical, abria um olho, à cautela. A estrada estava onde devia estar, e eu relaxava as mãos, para as cerrar logo a seguir. Estava ali mais uma curva.

Subíamos o caminho para casa. Coisa rápida. E, apesar da sensação de que o mais certo era cair para trás e dar, finalmente, a cambalhota invertida que me andavam a cobrar há anos nas aulas de educação física, seguia mais tranquila. O trilho íngreme não permitia velocidades de maior. E, em boa verdade, a lambreta também não.

Um dia o meu avô vendeu a lambreta. Trinta contos. Não disse nada a ninguém. Foi aí que percebi que, mais tarde ou mais cedo, haveria de ficar sem os dois. 

Gosto de pensar que, algures, noutra estrada qualquer, uma miúda agarra-se ao seu avô, em cima de uma lambreta verde, de pintura duvidosa. Se pudesse falar-lhe, dizia-lhe:

"Podes ter medo. Mas não feches os olhos nas curvas. Não vais querer perder nem um segundo dessa vossa viagem."

Eu perdi.

 

A minha avó não se mede aos palmos

A minha avó é pequena. Mesmo pequena. Tanto, que um dia um médico perguntou-lhe o tamanho. Olhou para a minha mãe e, sem auxílio, atirou, dona de si:

"Um metro e sessenta, Doutor!"

E o homem riu. Riu muito. Tal não era o exagero que um metro e sessenta lhe conferia.

É pequenina. Engraçadinha, como as coisas que nos cabem nas palmas das mãos. Mas não se mede aos palmos, não.

Uma vez, numa casa de banho pública qualquer, acompanhada da mesma filha que nem as medidas lhe fez o favor de relembrar, reparou que o buraco da fechadura tinha um olho. Estranhou. Era do Entroncamento , mas nem aí as fechaduras tinham mais do que um buraco.

Não precisou baixar-se muito para ficar ao nível do rostolho. Já vos disse que ela é pequena? Mirou o mirone nos olhos, esticou o indicador, e enfiou-o fechadura e vista adentro. 

Por entre gritos de "Ai Jesus, que me cegou", abriu a porta e seguiu caminho. O zarolho lá ficou, agarrado à cara e à perplexidade. Mais tarde haveria de jurar, que aquela mulher que o desgraçou era alta como um rochedo, e ele nunca viu nada assim.

Dores maiores

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Eram romarias que as minhas mãos pequenas, que seguravas, não entendiam.

Lembro-me do Sol a queimar por cima do meu chapéu de palha, e do cheiro a flores. A calçada gasta, fina, e a frescura das sombras. A jarra imponente sem primavera.

Procuravas uma torneira, um balde e um pano velho. Limpavas o mármore, como quem limpa as dores. Depois, pegavas na jarra e em mim. A água a transbordar, espelho dos teus olhos. Arranjavas as flores que tínhamos comprado, e fazíamos o caminho de volta. O caminho sem volta.

Centravas o arranjo. Limpavas o que já estava limpo, porque às vezes precisamos de tarefas inúteis para nos distrairmos da imensidão do que é real. 

"Vamos?"

Seguravas-me de novo pela mão. A gravilha a magoar-me entre os pés e as sandálias brancas. Não me queixava. Sabia, sei lá como, que a tua dor era maior.

 

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