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Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Se caíres, não te demores

"Ai, minha rica filha."

Era assim, de sobressalto na voz e mãos na cabeça, como quem vê a desgraça a passar-lhe rente ao peito, que a minha avó reagia quando me via cair.

Com mais ou menos sangue, mais ou menos lágrimas, o aparato era igual. Nem maior, nem mais pequeno.

"Ai, minha rica filha."

Corria até mim, levantava-me, sacudia-me o vestido, e limpava-me as feridas, se as havia. Depois voltava serena ao que estava a fazer, enquanto anunciava que aquilo não era nada e eu, que fosse à minha vida.

Foi assim pelos anos fora. Condoída por me ver sofrer, mas logo pronta a desfazer os nós que às vezes eu própria emaranhava. É um desapego apegado de quem sabe que tudo se perde, e não há tempo a perder.

Cada vez que me desiquilibro e esfolo os joelhos da alma na vida, ouço-lhe o grito, e sei que, a seguir, vai ficar tudo bem.

Um. Dois. Três.

Uma noite destas, enroscada na ponta da cama, tremia. A desejar que fosse dia, dei por mim a dar três palmadinhas na perna. 

Quando era pequena, e o colo da minha avó ainda me albergava inteira, era assim que me recebia. Um, dois, três. Três pancadinhas. Demasiado fortes para me embalarem, mas que, sem chegarem a magoar, me serenavam.

Durante toda a vida, e até hoje, que já não tenho tamanho para o tamanho que o colo dela tem, é assim que quebra os meus silêncios, mesmo que continue calada.

Mãos encolhidas pela idade que estica, chega-se a mim com um sorriso e cumpre o ritual. Uma espécie de trilogia de amor, a contar-me, três vezes, que há-de ficar tudo bem. Mesmo que agora esteja tudo mal.

Um. Dois. Três.

 

 

A alma também dói

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Chamam-lhe cão negro, mas eu tenho um e gosto muito dele. Em boa verdade, este morde, rasga a pele. O meu só me rosna quando não está satisfeito, mas não somos todos um bocadinho assim? Se tivesse de dar-lhe um nome, chamava-lhe dor de alma. Porque a alma não tem forma, e esta dor também não.

"O que é que sentes?"

Nada. Um nada que desagua num mar salgado de lágrimas, que é a forma que a alma tem de sangrar. E não há compressas nem pensos rápidos que estanquem olhos que nos derramam. De dentro para fora. Como se fôssemos um copo, e transbordar fosse a única forma de não partirmos.

Então estalamos. Lascamos, aqui e ali. Vamos ensaiando sorrisos como paliativos, mais para os outros do que para nós.

"O que é que sentes?"

Tudo. Como se todas as dores do mundo fizessem morada em nós. E queremos fugir, e dizer que não moramos aqui. Fazer as malas e metermo-nos ao caminho. "Volte mais tarde que agora não está ninguém". Mas está. Estamos. Nunca ninguém conseguiu fugir de si.

Então ficamos. Doemos. Gritamos com o rosto contra a almofada, porque são dores que não têm escala, nome, entendimento. Doem, apenas.

Se tivesse de dar-lhe um nome, chamava-lhe dor de alma. É que quando a alma dói, não há nada que não nos doa.

O meu sítio calmo é uma canção numa noite de verão

Quando penso num dia calmo, é verão e corre uma brisa fresca que não chega para me desalinhar os cabelos. O anoitecer demora e enamora, como um filtro de luz que nos embala.

Quando tudo é turbilhão, penso na aragem que me sopra a nuca e no arrepio que me percorre a espinha.

"Vai para o teu sítio calmo."

É tarde, mas não sei as horas. O pátio, ainda despido de telhas, é iluminado por uma Lua que só pode estar cheia, e varrido por um vento que mal chega a sê-lo. As lágrimas molham-me o vestido fino e o mau estar percorre-me o corpo. Bebo água fresca com bolhas que me fazem cócegas na língua. "Bebe que já passa. Já passa." 

Ergue-me no ar e repousa-me  nos ombros. Encosto o rosto molhado aos cabelos finos, alourados como os meus, enquanto lhe laço o pescoço. Cheira ao champô que dividimos. Caminha, para lá e para cá, num passo sereno que me acalenta. Baixinho, quase num susurro envergonhado, canta.

"Menina estás à janela, com o teu cabelo à Lua..."

Quando a vida é tormenta e agitação, e respirar é em vão, eu fecho os olhos. Sinto o frio glorioso de uma noite de verão, a luz de uma Lua que se encheu num balão, o balançar suave de um caminhar sem razão.

E, enfim, canto a canção. 

Os meus avós são um banquinho de madeira

Adorava comer. E comia como os adultos, entre os adultos. O meu avô fez-me um banquinho de madeira que colocava em cima de um cadeirão. O mesmo que lhe deu amparo nos últimos anos de vida. Eu esticava os braços e ele pegava-me ao colo. Eu achava que ele devia ser muito forte para me fazer voar, desde o chão, até aterrar no banquinho. 

A minha avó pousava-me o prato à frente. Carne cortada como se fossem dados de brincar, massinhas e cenouras, para os olhos ficarem bonitos. Confiava-me o garfo e a tarefa. Sabia que não era preciso mandar-me comer tudo.

Um dia, levou-me de autocarro até à vila.

"Vamos ao Doutor e depois compramos uma revista."

Não me pareceu mau negócio.

"A menina está gorda. Não a podem deixar comer da maneira que quer. A menina está gorda. Tem de fazer dieta. A menina está mesmo, mesmo gorda. Não quer ser feia, pois não?"

E eu não queria, mas já me sentia. Gorda e pequenina. Tanto, que desejei ter o meu avô a lançar-me no ar até ao banquinho que me fazia crescer.

Não me lembro das despedidas, nem do plano de dieta para deixar de ser a menina gorda que agora era. Lembro-me da mão da minha avó a entrelaçar a minha, para descermos as escadas íngremes que iam dar ao passeio, e de me puxar depois, em passo firme, para a porta ao lado. Uma pastelaria.

"Vá, filha. Agora escolhe o bolo que quiseres, e que nunca ninguém te diga que és feia, tu estás a ouvir ?"

Ainda hoje as bolas de berlim têm o sussurro da minha avó: "tu estás a ouvir?"

Foi aí que percebi que os meus avós foram um banquinho de madeira. Feitos para me elevar, quando acho que o tamanho me falta.

Estou presa como um lírio num botão

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O quintal da minha avó tinha canteiros fartos, num emaranhado de espécies que coloria a casa e a vida. No canteiro do lado esquerdo, assim que se pisava a rua, existia um ramo imenso de lírios brancos. Fazia dos botões microfones, do cimento o meu palco, e dançava ao som da música que só eu ouvia na minha cabeça. Rodava, repetidamente, sobre o meu corpo num desfecho antecipado pelo meu avô, que me sacudia depois as pedrinhas dos joelhos e me mandava seguir, que é o que se faz quando a contra-ordenação não é grave.

Agora os canteiros sobram terra vazia, e há, aqui e ali, uma flor ou outra, como que a avisar quem passa, que nem tudo por lá morreu. Os lírios mudaram de cor e agora são amarelos, numa espécie de ode à inocência que se perdeu, entre os meus concertos de improviso, e o agora, que me parece tão ou mais improvisado.

Pedi um lírio à minha avó e coloquei-o na cabeceira. Reparei ao anoitecer que se fechou num botão.

Então fico eu e o lírio. Os dois, fechados na noite e em nós. Na esperança mastigada que a luz de uma manhã qualquer nos venha libertar, e eu volte, enfim, a cantar. 

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