Sentava-se no cadeirão ao canto da sala, manta pelas pernas, que a casa era fria. Olhava de soslaio e abanava a cabeça:
"Um cão é para estar na rua, não é dentro de casa."
"Não digas isso avô, é pequenino."
Como se percebesse que o defendiam, empinava o nariz comprido, analisava as opções que tinha para chegar aos biscoitos, e escolhia o caminho mais longo que evitasse contacto com o meu avô.
Não se podiam ver. Nem queriam.
Uns anos mais tarde o meu avô adoeceu. O Sid deixou de escolher caminhos que não os cruzassem. Pedia para o deixarem subir à cama, enroscava-se aos seus pés, e só o deixou quando ele nos deixou também.
Na noite em que partiu, enquanto lhe fazia as últimas festas na cabeça, enrosquei-me aos pés dele e disse-lhe que estava tudo bem, porque o avô tinha ido primeiro e estava à espera dele.
Se calhar vai implicar quando ele lhe tentar destruir o enleio, que por esta altura já deve estar enorme. Ou perder a paciência quando ele ladrar a pedir-lhe bolachas. Dúvido que lhe aqueça o saco de água quente nas noites mais frias. Mas tenho a certeza que vai deixá-lo dormir dentro de casa, em cima da mesma cama, enroscado aos seus pés, como da última vez que fizeram os dois parte da mesma realidade.
Afinal, é isso que fazemos quando nos amam sem condição.
Lembro-me de me pedires calma, enquanto não conseguias encontrar a tua. Andavas da sala para a cozinha, mãos a bater uma na outra, como se faz quando não sabemos o que fazer. E eu insistia nas certezas absolutas que se têm na adolescência e dizia que não aguentava mais, que nunca traria tanta dor colada a mim, nem a sopraria noutros peitos que já padecessem também.
Abanavas a cabeça, mais triste que desiludido, enquanto, de voz embargada, dizias que não era culpa de ninguém. Que ninguém escolhia sofrer assim. Acontecia, como acontecem outros acasos infelizes. Depois baixavas os olhos, fitavas o chão, derrotado. Porque tu percebias, mas não esperavas que ninguém percebesse.
Agora, sozinha no escuro, enquanto o ar me faltava e desabava de dentro para fora, como maré que enche, sussurraste-me a calma que me pediste tanta vez. Vi-te, mãos a bater uma na outra, como se as minhas dores te doessem em toda a parte, além do corpo que já não és.
Ouço-te e compreendo. Porque já não tenho certezas absolutas, e aprendi que ninguém escolhe sofrer assim. Ninguém anseia ter de ansiar que o ar chegue, nem que os músculos baixem a guarda e permitam que o corpo descanse.
Sinto a respiração a voltar ao normal, e o peito percebe que afinal tem todo o ar do mundo à disposição. O corpo relaxa, como um soldado que vê a bandeira branca e sabe que a guerra acabou. Os olhos pesam, e sei que vou poder dormir, embalada pelos teus pedidos de calma de há vinte anos.
Às vezes acho que percebias, porque também tu eras mar revolto. Talvez por isso tenhas escolhido o rio.
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