Quando a filha da vizinha se casou, foi um acontecimento. O bairro estava habituado a flores e dores, mas os laços nos carros, os folhos e as gravatas, nunca tinham sido para ali chamados.
Eu queria um vestido laranja, sem cerimónias. Então, a minha mãe comprou-me um vestido branco, com mais rendas que as colchas das minhas tias. Saia rodada, e mangas em balão. Parecia os caramelos que o meu pai me trazia de Espanha, mas pior.
"Não faças essa cara. Isso é bordado inglês, depois dá para levares para a escola."
Ia rir-me, mas vi que ela estava a falar a sério, e deixei de achar graça.
Quando fomos, à tarde, comprar os fatos dos meus avós, íamos dois. Eu e o meu burro amarrado, ainda à conta da toilette. O meu avô comprou um fato castanho, que havia de usar pelo resto da vida, a cada cerimónia que o justificasse. A minha avó comprou um fato saia e casaco azulão. Não havia ninguém para obrigá-la a vestir um abajur.
Na sapataria, a mesma que me condenou a umas sandálias e meias brancas, a minha avó comprou umas sandálias azuis, de salto alto. Invejei-lhe a sorte, e passadas as festividades, passei a andar com elas por casa.
O barulho do salto nos mosaicos brancos, faziam sentir-me importante. Alta, ainda que desengonçada. Se fosse a minha avó nunca as tirava.
"Ó 'vó, porque é que nunca usas estas sandálias? São tão lindas."
"Ferem-me os pés."
Acho que foi a primeira vez que percebi, que nos sapatos dos outros, por mais bonitos que sejam, só eles sabem o quanto custa andar.
Era setembro, e eu sabia escrever as letras do meu nome. A minha avó dizia para me deixarem brincar, mas eu já estava perdida entre cadernos e canetas, e se a escola fosse em casa, podia começar já. O meu avô comprou-me uma mochila da Ambar, na loja da Dona Nana. Era roxa e verde, e custou-lhe cinco contos. E o miúdo da vizinha estava avisado para olhar por mim.
A manhã chegou devagar, mas mais depressa do que todas as outras. As rolas cantavam para me despertar, e a cortina branca e rendilhada, fazia questão de não fintar a luz, para iluminar tudo o que era. Foi a primeira vez que não me quis levantar.
O avô já tinha saído, e a avó já tinha bebido o café. O dia corria igual, banal, mas estava tudo diferente. Foi nessa tarde, a subir a encosta que ia dar à escola, com a minha mochila roxa e verde às costas, que o mundo deixou de ser só flores e cimento quente, figos caídos e pombos corridos. Descobri que o mundo era maior. Mas o meu era melhor.
É uma porta antiga, mas ninguém diria. Tem no centro uma ranhura para o correio, que deixava as cartas ensopadas no inverno, e que sempre usei para chamar a minha avó. Os vidros castanhos, têm um jardim a condizer com o quintal. Flores que se entrelaçam num padrão que decorei com todos os sentidos e sentir. Reflectem nas paredes da casa todas as vezes que o Sol se impõe dono do dia, ou que um farol de um carro ilumina a noite.
Passou por ela tanta gente. Fecho os olhos e vejo-os entrar.
"Ó Júlia, estão a bater à porta."
E ela vinha, mesmo estando mais longe. Apressada, contrariada, a limpar as mãos ao avental.
Depois abria a porta e o sorriso.
"Entre, entre!"
Porque era uma casa que mandava gente entrar, e ficar. E lhes preparava comida, e quantas camas fossem precisas. Era uma casa farta, que não se fartava. E mesmo quando o fardo pesava, se relevava e continuava.
Foi porta porteira de más notícias a meio da madrugada, daquelas que nos deixam ali, entre a ombreira e o chão, e já pouco chão nos sobra. Mas depois recebeu boas novas. Os milagres que a vida nos dá às 20h12 de uma noite de outono.
Há uns tempos, a levantar a portinhola do correio para chamar por ela, nos segundos de silêncio que se seguiram antes de me responder, apercebi-me de que um dia aquela casa com voz se vai calar. A porta vai deixar de abrir por dentro, e as notícias vão ser dadas noutro lugar.
Quando a porta se trancar, há uma miúda que vai continuar a chocalhar a caixa do correio, e uma avó que lhe vai responder. Porque são assim as coisas ternas, eternas.
Revirei-me do avesso, despi-me de dentro para fora. Quero saber de onde vem isto de sentir tanto. Em demasia, para o pouco que um só peito suporta. Quero saber. Quem me tornou cativa do meu coração. A contar-lhe batidas, anseios, corridas. Ao menos que me fizessem maior. Ou dividissem as penas por mais prisioneiros.
Fiz contas ao que tenho, e sobrou-me saudade. É o troco que se leva quando se sente. E eu já disse que sinto muito. Não tenho porta-moedas para tanto sobejo. Às vezes, deixo-as cair. Copiosamente, como chuva em dezembro. Depois resto-me a mim para as apanhar, secar, guardar.
Viver cá dentro é conviver com tudo o que foi, e tudo o que será. Estou cansada de não ter espaço definitivo no tempo. Quero saber o agora.
Para chegar atravessa-se uma rampa íngreme. Como se quem lá passa, já não levasse carrego suficiente no peito. Há que ter pernas e coração fortes. Ou, pelo menos, um par de ombros alheios, que sirvam de amparo a almas desamparadas.
É quando se faz aquela curva, onde começam escadas e preces, que se abre o mundo. Os muros rendilhados a muralha, denunciam-lhe o nome com que o baptizaram. Castelo. Onde o Tejo é rei, e tudo o resto lhe beija a margem.
Há um banco de madeira nova, assente em cimento velho. A árvore que lhe dá sombra, inclina-se cansada, ou sedenta da água que tem à frente, mas que nunca alcança. Quem lá se calha a sentar, sabe que repousa numa metáfora.
Sento-me a sentir o presente. Guarnapos de papel, escritos a caneta azul, cobrem-me as pernas. Atrás de mim os mortos a repetirem a várias vozes, que o passado não muda. A terra revolta-se, as flores trocam-se, e enfeitam mármores de várias formas. Mas a forma que a vida foi, é igual. À minha frente, o rio a correr adiante, como tem de ser. A contar-me que vamos onde temos de ir, e é melhor irmos serenos.
Há guardanapos de papel, com frases soltas, por toda a parte. Histórias espalhadas com o vento, misturadas com as folhas, com as sombras. Os mortos a fazerem guarda de honra ao presente, e o futuro à espera de ser escrito.
Sei que estás acordada, apesar das horas. Amanhã tens escola, devias descansar. Deixa de olhar as cortinas, até ter passado tanto tempo, que as formas vão mudando de forma. E se apagasses a luz? Esse livro encostado ao candeeiro, para fazer sombra, não é igual à paz de um quarto escuro. Deixa de olhar o abajur e fingir que é um acordeão a embalar-te as noites. Fecha só os olhos.
Sei que não queres dormir, apesar do sono te pesar as pálpebras, e o cansaço te minar o corpo pequeno. Larga os livros que fazem pilha ao lado da cama. Podem fazer-te companhia fechados, despojados da tua atenção. Fecha os olhos e inventa uma história feliz. Diferente das que te contas todos os dias. Descansa.
Eu sei. Eu sei que queres velar o corredor escuro, para antecipar a escuridão. Que o medo atenuado pela luz, é medo à mesma e não te deixa dormir. Eu sei que contas os segundos, num dueto perfeito com os ponteiros do relógio. Como se contar o tempo, fizesse o tempo passar mais rápido. Pára. Por favor, fecha os olhos. Está tudo bem. São muitas noites mais tarde, e está tudo bem.
Havia cavalos no Tejo, a refrescarem um dia de verão. Pessoas na rua, a fazerem dela o que ela era antigamente. A brisa era quente, como o calor daquela gente. Ao canto, sentado num muro branco, a condizer com a camisa, estavas tu. Cabelo ainda negro, como as azeitonas que apanhávamos nos finais de tarde, de cada outono.
"Não chego lá, avô. Não chego!"
Continuavas a tarefa comigo às cavalitas. Mais azeitonas no chão, que na saca. Mais amor, sempre.
Estavas, à conversa, debaixo da única sombra que existia. Rias. Muito e alto. Não me viste e não fez mal. Encheste o copo de vinho e brindaste à vida.
Cada vez que o peito aperta e tudo aflige e dói, esperas que durma e apareces. Tu e o copo de tinto. A lembrar-me que quando ele está vazio, somos nós que o temos de encher. À sombra de um dia de Sol, na margem do rio que somos, nas gargalhadas antigas de um amor que é para sempre.
Às vezes fixo um ponto na parede e fico a olhá-lo, como se me visse. A altura é a minha, mas mais altiva, e os dedos finos têm mais firmeza. O cabelo alourado não tem pontas soltas, e sabe bem com que linhas se amarra. O nariz é igual, pequeno, mas ascendente, como se fosse o primeiro a chegar, quando chego. Trago debaixo do braço folhas soltas, escritas à mão. Letra perfeita, tinta preta. Detesto tinta preta.
"Sabia que ia chegar o dia."
É tudo o que consigo ler, por entre um cotovelo e uma costela. Suponho que chegue. Que aquele ponto na parede seja espelho de outra parede qualquer. Que me espera. Que me reflecte inteira, com medos e sonhos, desmedidos na mesma medida.
Levantou-se a meio de um domingo de agora, sozinho e confuso. A casa afundava-se no pouco que sobrava, e em tudo havia quase nada de afecto. Olhou para o relógio. Já eram trinta anos atrás. Procurou a farda de um trabalho que já não tinha, e comeu apressado, atrasado para coisa nenhuma.
Sentou-se. A cadeira rangeu, num esgar de dor que abraçava todas as dores que passaram por ela. Olhou a mesa e tudo o resto. Espaços alheios que sempre foram só dele. Já teria comido? O prato vazio a dar-lhe a resposta. A dúvida vincada, na memória que lhe fugia.
Chamou-a. O silêncio trouxe-o de volta ao presente, e ao luto que fazia cada vez que ela não respondia. Pegou no prato e no copo e, sem saber onde ia, largou-os logo a seguir. Levou as mãos à cabeça. Lembrou-se que estava atrasado. Eram trinta anos depois. Bem podia ser agora, ou mais tarde. Ele já não era hoje.
Quando aparecíamos todos ao mesmo tempo, éramos muitos, e a casa fazia o favor de duplicar. A mesa desdobrava-se noutra e albergava-nos sem excepção. Pratos e copos desavindos, e uma ou outra colher a servir de garfo. Os ovos faziam par com as salsichas, e as batatas fritas empapadas em óleo, repousavam em guardanapos de papel, até a avó dar ordem.
"Vá, filhos, toca a comer."
Havia um que não gostava da gema, e outro que não gostava da clara. Havia sempre algum a abusar da coca-cola, e outro a controlar quantos copos a menos esse ia beber amanhã.
"Hoje fico no lugar do avô."
Dava sempre discussão, como se a cadeira do avô nos fizesse maiores, melhores. Como se dali se visse o mundo todo, e um bocadinho mais além.
A noite chegava devagar, como se não quisesse incomodar tanta luz com escuridão. Então, havia banhos de par em par, pijamas improvisados, canecas de café com leite, e bolachas Maria barradas com manteiga Planta.
Éramos cinco para uma cama de corpo e meio, e eu imaginava sempre algum a ser serrado em dois, mas nunca eu. No chão de madeira velha, a avó empilhava cobertores até conseguirmos fingir que tínhamos um colchão. Dois apertavam-se na cama, outros três no soalho. Conversávamos baixinho, num riso que se segreda e uma felicidade que se abafa, mas não se contém.
Era quando iam adormecendo, um a um, que eu me mantinha acordada para os ouvir.
No quarto que guardava a porta de casa, no silêncio dos netos que se renderam ao sono, os meus avós falavam num sussurro doce e indecifrável. As luzes do candeeiro de rua a iluminar parte do corredor, os ponteiros do relógio da sala a embalar a noite, e eles. As vozes baixinhas a contar histórias que nunca soube quais eram.
Fechava os olhos e deixava-me adormecer. Até hoje, ninguém escreveu balada mais doce, que a melodia dos meus avós a conversarem na noite.
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