Chamam-lhe cão negro, mas eu tenho um e gosto muito dele. Em boa verdade, este morde, rasga a pele. O meu só me rosna quando não está satisfeito, mas não somos todos um bocadinho assim? Se tivesse de dar-lhe um nome, chamava-lhe dor de alma. Porque a alma não tem forma, e esta dor também não.
"O que é que sentes?"
Nada. Um nada que desagua num mar salgado de lágrimas, que é a forma que a alma tem de sangrar. E não há compressas nem pensos rápidos que estanquem olhos que nos derramam. De dentro para fora. Como se fôssemos um copo, e transbordar fosse a única forma de não partirmos.
Então estalamos. Lascamos, aqui e ali. Vamos ensaiando sorrisos como paliativos, mais para os outros do que para nós.
"O que é que sentes?"
Tudo. Como se todas as dores do mundo fizessem morada em nós. E queremos fugir, e dizer que não moramos aqui. Fazer as malas e metermo-nos ao caminho. "Volte mais tarde que agora não está ninguém". Mas está. Estamos. Nunca ninguém conseguiu fugir de si.
Então ficamos. Doemos. Gritamos com o rosto contra a almofada, porque são dores que não têm escala, nome, entendimento. Doem, apenas.
Se tivesse de dar-lhe um nome, chamava-lhe dor de alma. É que quando a alma dói, não há nada que não nos doa.
Quando penso num dia calmo, é verão e corre uma brisa fresca que não chega para me desalinhar os cabelos. O anoitecer demora e enamora, como um filtro de luz que nos embala.
Quando tudo é turbilhão, penso na aragem que me sopra a nuca e no arrepio que me percorre a espinha.
"Vai para o teu sítio calmo."
É tarde, mas não sei as horas. O pátio, ainda despido de telhas, é iluminado por uma Lua que só pode estar cheia, e varrido por um vento que mal chega a sê-lo. As lágrimas molham-me o vestido fino e o mau estar percorre-me o corpo. Bebo água fresca com bolhas que me fazem cócegas na língua. "Bebe que já passa. Já passa."
Ergue-me no ar e repousa-me nos ombros. Encosto o rosto molhado aos cabelos finos, alourados como os meus, enquanto lhe laço o pescoço. Cheira ao champô que dividimos. Caminha, para lá e para cá, num passo sereno que me acalenta. Baixinho, quase num susurro envergonhado, canta.
"Menina estás à janela, com o teu cabelo à Lua..."
Quando a vida é tormenta e agitação, e respirar é em vão, eu fecho os olhos. Sinto o frio glorioso de uma noite de verão, a luz de uma Lua que se encheu num balão, o balançar suave de um caminhar sem razão.
O quintal da minha avó tinha canteiros fartos, num emaranhado de espécies que coloria a casa e a vida. No canteiro do lado esquerdo, assim que se pisava a rua, existia um ramo imenso de lírios brancos. Fazia dos botões microfones, do cimento o meu palco, e dançava ao som da música que só eu ouvia na minha cabeça. Rodava, repetidamente, sobre o meu corpo num desfecho antecipado pelo meu avô, que me sacudia depois as pedrinhas dos joelhos e me mandava seguir, que é o que se faz quando a contra-ordenação não é grave.
Agora os canteiros sobram terra vazia, e há, aqui e ali, uma flor ou outra, como que a avisar quem passa, que nem tudo por lá morreu. Os lírios mudaram de cor e agora são amarelos, numa espécie de ode à inocência que se perdeu, entre os meus concertos de improviso, e o agora, que me parece tão ou mais improvisado.
Pedi um lírio à minha avó e coloquei-o na cabeceira. Reparei ao anoitecer que se fechou num botão.
Então fico eu e o lírio. Os dois, fechados na noite e em nós. Na esperança mastigada que a luz de uma manhã qualquer nos venha libertar, e eu volte, enfim, a cantar.
Ontem à noite, o cão de um vizinho ladrou, incessantemente, durante três horas. Eu lia e ele ladrava, e eu lia a mesma frase outra vez, porque ele ladrava. Ficámos neste embalar ao contrário, quando a esperança se mistura com o desespero, e já não sabemos se somos feitos de coragem ou medo. Não sei quando se calou, tinha-me habituado ao latir compassado e resiliente, e foi só depois de um momento prolongado de silêncio que dei pela ausência de ruído.
Fechei o livro. Olhei o relógio. Duas da manhã e uma sensação de déjà-vu. O cão era a minha ansiedade. O ladrar insistente eram as dores, as dormências, as palpitações. A certeza de que nunca vai passar, e o momento efémero em que me apercebo que, há algum tempo, que passou, só para voltar novamente.
A minha ansiedade é um cão sozinho a meio da noite. Quer atenção. A minha atenção. E eu leio as mesmas frases do mesmo livro, repetidas e gastas, como o mal estar que me percorre o corpo. Aceito. Não porque não me ache capaz, mas porque coabitamos o mesmo espaço há tempo suficiente para saber que resistir-lhe, é prolongar um sofrimento que não falha, mas pode ser menor.
A minha avó sempre me disse, os cães ladram e a caravana passa.
Há um funeral na minha cabeça. Constante e repetido, como o soar dos sinos a cada hora de cada dia.
É como um velório em dia de chuva, quando a água não vem para lavar almas, mas para derrocar os poucos que permanecem de pé. Já foram a um velório à chuva? É como se o dia se vestisse a rigor, e as nuvens pesassem mais que todos os corações carregados daquela dor, que só é comparável à dos que acompanham o enterro seguinte.
Há um funeral na minha cabeça, e não sei o que vestir.
Quero vestir-me de amarelo e levar sandálias, mesmo com o tempo nublado. Mesmo que o cheiro a terra molhada se me entranhe os pés e a vida. Não quero guarda-chuva, nem agasalho. Também não quero chorar, se não sei quem choro.
Não há mortos, missas de corpo presente ou de sétimo dia. Mas há um funeral na minha cabeça. Como um ritual inventado para me fazer duvidar, definhar.
Não há-de tardar.
Hei-de pegar no vestido e nas sandálias, e fazer do funeral uma festa.
Chega aqui. Senta-te um bocadinho, que pareces cansada. Essa tua mania de te preocupares com cada minuto que não controlas, com cada passo que não dás com os teus pés, vai-te matar. Sabes disso, não sabes? Bem sei, bem sei. Sou eu que te conto coisas aos ouvidos. Que te digo que vai correr mal, e que as pessoas não gostam de ti. Mas, e então? Quem é que te fez tão insegura?
Deixa-te estar. Não vás já. Bebe um copo de água, e relaxa esses ombros. Sempre encolhidos, tolhidos, como se alguém te fosse atacar. Como se te tivesses de defender de alguma coisa. Irrita-me, que não saibas ter calma. Se te enervo? Enervo. Exijo-te alerta máximo a cada momento da tua existência, porque, minha menina, a vida não é fácil. Mas, e depois? Tens de ser assim tão fraca?
Não chores. Toma lá um lenço, vá. Não podes estar sempre a derramar lágrimas como se isto fosse uma tragédia. Certo. Não te deixo dormir, e quando me distraio e adormeces, invento pesadelos para acordares aflita. Pensas que és a única a ter pesadelos? Não és. Mas as pessoas acordam e vão à sua vida. Não é o fim do mundo.
Já vais? Pronto. Deixo-te ir. Não quero que digas que te prendo ou massacro. O que te digo é para o teu bem. Vai lá, que já te encontro. Vou estar no mesmo sítio, a contar-te as mentiras do costume.
Falam muito alto e atropelam-se, como as famílias numerosas. Chegam de repente, como prenúncios do fim do mundo. Não pedem licença, nem autorização de residência. Arrombam a porta e desalinham a vida, como um furacão.
Às vezes demoram-se, e decidem que hoje vai correr tudo mal.
"Não penses que são coisas da tua cabeça. Que são. Mas hás-de ficar sem chão".
Outras vão, como vieram. Num sopro que derruba casas e corações, e deixam para trás o silêncio, que chega sempre, depois da destruição.
Fecho os olhos e respiro fundo. Tanto, como se quisesse açambarcar no peito todo o ar que existe no mundo. Desacelero o coração cansado, que não desiste mas reclama. Deixo o sangue voltar a correr, enquanto tento apenas caminhar. Um passo de cada vez. Um dia de cada vez.
São eles que me desarrumam. Sou eu que sobro para me arrumar.
Começa no peito, como uma moínha, uma dor fina que não chega a ser. Sobe a compasso pela traqueia e procura a laringe. Acomoda-se. Sinto-o a puxar uma cadeira, sorriso matreiro, e jornal na mão. Veio para se demorar.
Respiro fundo numa batalha antiga. As dores não me assustam, mas cansam. Percebo-o instável. Abano-lhe a cadeira, e sacudo-lhe o jornal das mãos. Pelo caminho, apago a luz, que são horas de dormirmos. Eu e o nó.
Deito-me com ele, sabendo que vai tornar tudo mais difícil. A noite mais longa. A respiração instável. Já o conheço. Não somos amigos, mas respeitamo-nos. Ele faz a parte dele. Angustiar-me. Eu, a minha. Resistir.
Passo a vida a desatar nós. Hei-de criar laços bonitos.
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