É uma porta antiga, mas ninguém diria. Tem no centro uma ranhura para o correio, que deixava as cartas ensopadas no inverno, e que sempre usei para chamar a minha avó. Os vidros castanhos, têm um jardim a condizer com o quintal. Flores que se entrelaçam num padrão que decorei com todos os sentidos e sentir. Reflectem nas paredes da casa todas as vezes que o Sol se impõe dono do dia, ou que um farol de um carro ilumina a noite.
Passou por ela tanta gente. Fecho os olhos e vejo-os entrar.
"Ó Júlia, estão a bater à porta."
E ela vinha, mesmo estando mais longe. Apressada, contrariada, a limpar as mãos ao avental.
Depois abria a porta e o sorriso.
"Entre, entre!"
Porque era uma casa que mandava gente entrar, e ficar. E lhes preparava comida, e quantas camas fossem precisas. Era uma casa farta, que não se fartava. E mesmo quando o fardo pesava, se relevava e continuava.
Foi porta porteira de más notícias a meio da madrugada, daquelas que nos deixam ali, entre a ombreira e o chão, e já pouco chão nos sobra. Mas depois recebeu boas novas. Os milagres que a vida nos dá às 20h12 de uma noite de outono.
Há uns tempos, a levantar a portinhola do correio para chamar por ela, nos segundos de silêncio que se seguiram antes de me responder, apercebi-me de que um dia aquela casa com voz se vai calar. A porta vai deixar de abrir por dentro, e as notícias vão ser dadas noutro lugar.
Quando a porta se trancar, há uma miúda que vai continuar a chocalhar a caixa do correio, e uma avó que lhe vai responder. Porque são assim as coisas ternas, eternas.
Havia cavalos no Tejo, a refrescarem um dia de verão. Pessoas na rua, a fazerem dela o que ela era antigamente. A brisa era quente, como o calor daquela gente. Ao canto, sentado num muro branco, a condizer com a camisa, estavas tu. Cabelo ainda negro, como as azeitonas que apanhávamos nos finais de tarde, de cada outono.
"Não chego lá, avô. Não chego!"
Continuavas a tarefa comigo às cavalitas. Mais azeitonas no chão, que na saca. Mais amor, sempre.
Estavas, à conversa, debaixo da única sombra que existia. Rias. Muito e alto. Não me viste e não fez mal. Encheste o copo de vinho e brindaste à vida.
Cada vez que o peito aperta e tudo aflige e dói, esperas que durma e apareces. Tu e o copo de tinto. A lembrar-me que quando ele está vazio, somos nós que o temos de encher. À sombra de um dia de Sol, na margem do rio que somos, nas gargalhadas antigas de um amor que é para sempre.
Levantou-se a meio de um domingo de agora, sozinho e confuso. A casa afundava-se no pouco que sobrava, e em tudo havia quase nada de afecto. Olhou para o relógio. Já eram trinta anos atrás. Procurou a farda de um trabalho que já não tinha, e comeu apressado, atrasado para coisa nenhuma.
Sentou-se. A cadeira rangeu, num esgar de dor que abraçava todas as dores que passaram por ela. Olhou a mesa e tudo o resto. Espaços alheios que sempre foram só dele. Já teria comido? O prato vazio a dar-lhe a resposta. A dúvida vincada, na memória que lhe fugia.
Chamou-a. O silêncio trouxe-o de volta ao presente, e ao luto que fazia cada vez que ela não respondia. Pegou no prato e no copo e, sem saber onde ia, largou-os logo a seguir. Levou as mãos à cabeça. Lembrou-se que estava atrasado. Eram trinta anos depois. Bem podia ser agora, ou mais tarde. Ele já não era hoje.
Quando aparecíamos todos ao mesmo tempo, éramos muitos, e a casa fazia o favor de duplicar. A mesa desdobrava-se noutra e albergava-nos sem excepção. Pratos e copos desavindos, e uma ou outra colher a servir de garfo. Os ovos faziam par com as salsichas, e as batatas fritas empapadas em óleo, repousavam em guardanapos de papel, até a avó dar ordem.
"Vá, filhos, toca a comer."
Havia um que não gostava da gema, e outro que não gostava da clara. Havia sempre algum a abusar da coca-cola, e outro a controlar quantos copos a menos esse ia beber amanhã.
"Hoje fico no lugar do avô."
Dava sempre discussão, como se a cadeira do avô nos fizesse maiores, melhores. Como se dali se visse o mundo todo, e um bocadinho mais além.
A noite chegava devagar, como se não quisesse incomodar tanta luz com escuridão. Então, havia banhos de par em par, pijamas improvisados, canecas de café com leite, e bolachas Maria barradas com manteiga Planta.
Éramos cinco para uma cama de corpo e meio, e eu imaginava sempre algum a ser serrado em dois, mas nunca eu. No chão de madeira velha, a avó empilhava cobertores até conseguirmos fingir que tínhamos um colchão. Dois apertavam-se na cama, outros três no soalho. Conversávamos baixinho, num riso que se segreda e uma felicidade que se abafa, mas não se contém.
Era quando iam adormecendo, um a um, que eu me mantinha acordada para os ouvir.
No quarto que guardava a porta de casa, no silêncio dos netos que se renderam ao sono, os meus avós falavam num sussurro doce e indecifrável. As luzes do candeeiro de rua a iluminar parte do corredor, os ponteiros do relógio da sala a embalar a noite, e eles. As vozes baixinhas a contar histórias que nunca soube quais eram.
Fechava os olhos e deixava-me adormecer. Até hoje, ninguém escreveu balada mais doce, que a melodia dos meus avós a conversarem na noite.
Adorava comer. E comia como os adultos, entre os adultos. O meu avô fez-me um banquinho de madeira que colocava em cima de um cadeirão. O mesmo que lhe deu amparo nos últimos anos de vida. Eu esticava os braços e ele pegava-me ao colo. Eu achava que ele devia ser muito forte para me fazer voar, desde o chão, até aterrar no banquinho.
A minha avó pousava-me o prato à frente. Carne cortada como se fossem dados de brincar, massinhas e cenouras, para os olhos ficarem bonitos. Confiava-me o garfo e a tarefa. Sabia que não era preciso mandar-me comer tudo.
Um dia, levou-me de autocarro até à vila.
"Vamos ao Doutor e depois compramos uma revista."
Não me pareceu mau negócio.
"A menina está gorda. Não a podem deixar comer da maneira que quer. A menina está gorda. Tem de fazer dieta. A menina está mesmo, mesmo gorda. Não quer ser feia, pois não?"
E eu não queria, mas já me sentia. Gorda e pequenina. Tanto, que desejei ter o meu avô a lançar-me no ar até ao banquinho que me fazia crescer.
Não me lembro das despedidas, nem do plano de dieta para deixar de ser a menina gorda que agora era. Lembro-me da mão da minha avó a entrelaçar a minha, para descermos as escadas íngremes que iam dar ao passeio, e de me puxar depois, em passo firme, para a porta ao lado. Uma pastelaria.
"Vá, filha. Agora escolhe o bolo que quiseres, e que nunca ninguém te diga que és feia, tu estás a ouvir ?"
Ainda hoje as bolas de berlim têm o sussurro da minha avó: "tu estás a ouvir?"
Foi aí que percebi que os meus avós foram um banquinho de madeira. Feitos para me elevar, quando acho que o tamanho me falta.
O quintal da minha avó tinha canteiros fartos, num emaranhado de espécies que coloria a casa e a vida. No canteiro do lado esquerdo, assim que se pisava a rua, existia um ramo imenso de lírios brancos. Fazia dos botões microfones, do cimento o meu palco, e dançava ao som da música que só eu ouvia na minha cabeça. Rodava, repetidamente, sobre o meu corpo num desfecho antecipado pelo meu avô, que me sacudia depois as pedrinhas dos joelhos e me mandava seguir, que é o que se faz quando a contra-ordenação não é grave.
Agora os canteiros sobram terra vazia, e há, aqui e ali, uma flor ou outra, como que a avisar quem passa, que nem tudo por lá morreu. Os lírios mudaram de cor e agora são amarelos, numa espécie de ode à inocência que se perdeu, entre os meus concertos de improviso, e o agora, que me parece tão ou mais improvisado.
Pedi um lírio à minha avó e coloquei-o na cabeceira. Reparei ao anoitecer que se fechou num botão.
Então fico eu e o lírio. Os dois, fechados na noite e em nós. Na esperança mastigada que a luz de uma manhã qualquer nos venha libertar, e eu volte, enfim, a cantar.
Está fresco, imagino. O Sol já se pôs, mas deixou para trás um filtro de luz que me deixa ver cada canto de cada canteiro. As flores envergonham-se, sem cor nem aroma, e o estendal vazio, corta ao meio aquele espaço que conheço inteiro.
A porta abre-se, e espreitas. Vestes as calças de fazenda cinzentas, demasiado vincadas, perfeitas. Tens o cabelo cortado e a pele menos enrugada, o andar mais recto, mais teu. Não falas, e isso aflige-me. Não te consigo falar, e isso aflige-me mais. Pousas o teu olhar em mim e percebo que devo entrar.
A sala tem mais luz, mas nunca muita. A mesa está posta e há o ruído de uma família grande num espaço pequeno, mas é como se os meus ouvidos estivessem tapados por um oceano. Passam-me pratos e garrafas de vinho pelos olhos. Sei que está frio, mas não o sinto. Não me cheira a nada, mas serves-te do tacho grande. Suponho que seja um dia solene, porque abriram a mesa, e há mais cadeiras do que aquelas que temos.
Estou apertada a um canto, entre o sofá grande e o cadeirão. Parece Natal, mas não vejo árvore nem presentes. Tudo são vultos e sons indistintos. Menos tu. Pegas no copo de vinho e fazes-me sinal, como quem brinda ao infinito.
Acordo na dúvida se devo acender a luz, mas o Sol decide isso por mim. Fecho os olhos e brindo de volta. Há tanto tempo que não te via.
O meu avô tinha os olhos cor de amêndoa e as mãos ásperas, de dar arrepios. A vida de trabalho no campo tornou-o rígido, mas nunca amargo. Era doce. Como pêssegos no pico do verão. Quando se zangava, arregalava os olhos, como quem diz, sem dizer, "Queres ter problemas?" Não queríamos, obrigadinha. E cada um ia à sua vida, com a auréola de volta ao cocoruto.
Ensinou-me a nadar numa manhã de julho.
"Não te rales, que o avô não te larga."
Quando julho chega, as piscinas abrem, e os miúdos fazem procissões de mochila às costas, lembro-me dele. De quando fazíamos o mesmo caminho pela fresca, mala numa mão, eu na outra.
"Cuidado com os carros. Anda pela beirinha."
O senhor ao portão a dizer para entrar, que filho da terra não paga. E a neta também não. O cheiro a cloro quando nos separávamos à entrada dos balneários, e o reencontro em frente ao mar azul que se podia arranjar.
Contou esta história até ao fim dos seus dias. Orgulhoso por me ter ensinado. Como se a sua existência precisasse de mais dádivas e não se sobrasse nela própria. De caminho, cumpriu pela vida toda, a promessa que me fez naquela manhã de verão.
O meu avô tinha uma lambreta verde, que um dia pintou à trincha. Ficou um trabalho lindo. Para um cego. Ele encolhia os ombros. O que lhe saía caro em piadas, saía-lhe barato em tinta. Tinha capacete a condizer, verde-esmeralda, de fábrica. Poupou-lhe as pinceladas. Por baixo, duas tiras seguravam-lhe o queixo, que raramente caía. Já tinha visto de tudo.
Eu adorava a lambreta. Quando ela estava parada. Desde miúda, que aquela ideia de fazer piscas com os braços não me parecia genial.
"E se te desequilibras?"
"Agarra-te ao avô, que não cais."
E isso não me descansava. Porque se ele caísse, caíamos os três. Eu, ele e a lambreta.
A direito a viagem fazia-se. Era nas curvas que me tremiam as pernas. Quando via uma a chegar, fechava os olhos com muita força, e só não rezava porque não sabia rezar. Sentia o corpo a pender para um lado, depois para o outro. Quando me percebia na vertical, abria um olho, à cautela. A estrada estava onde devia estar, e eu relaxava as mãos, para as cerrar logo a seguir. Estava ali mais uma curva.
Subíamos o caminho para casa. Coisa rápida. E, apesar da sensação de que o mais certo era cair para trás e dar, finalmente, a cambalhota invertida que me andavam a cobrar há anos nas aulas de educação física, seguia mais tranquila. O trilho íngreme não permitia velocidades de maior. E, em boa verdade, a lambreta também não.
Um dia o meu avô vendeu a lambreta. Trinta contos. Não disse nada a ninguém. Foi aí que percebi que, mais tarde ou mais cedo, haveria de ficar sem os dois.
Gosto de pensar que, algures, noutra estrada qualquer, uma miúda agarra-se ao seu avô, em cima de uma lambreta verde, de pintura duvidosa. Se pudesse falar-lhe, dizia-lhe:
"Podes ter medo. Mas não feches os olhos nas curvas. Não vais querer perder nem um segundo dessa vossa viagem."
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