As boas famílias medem-se em revistas Maria
Não sabia bem onde começava e terminava a família. Diziam que o sangue era fórmula, mas nunca me serviu nos cálculos.
Às vezes chegavam visitas de surpresa. Tinham me dito que surpresas eram coisas boas, mas eu quando abria presentes não ficava com o ar desacorçoado da minha avó, quando abria a porta.
"Dá cá um beijinho à tia."
E eu ia beijar os pés da mesa, que não conhecia a senhora e não queria abrir precedentes. É que atrás dela, vinha outra.
"Lá está ela a brincar às escondidas."
Não estava a brincar, não.
"Oh 'vó, posso ir à vizinha?"
E corria passeio abaixo. Abria o portão verde e entrava sem me anunciar. Não gritamos presente, cada vez que entramos em casa. Sentava-me na sala a ler revistas, à espera da minha vez de jogar naquela coisa que se ligava à televisão.
Um dia, de revista Maria na mão, entretive-me a ler o consultório sentimental. Achava muito estranho se escrever para uma revista a perguntar se se estava grávida, em vez de ir ao médico. Mas isso era eu. Entre várias questões, saltou-me à vista uma em particular, que me intrigou.
"Oh vizinha, o que é um orgasmo? Está aqui uma senhora a dizer que não tem."
O silêncio que se fez, só foi ultrapassado em dimensão pela gargalhada que lhe seguiu. Não aprendi, naquele dia, o que era aquilo que aquela senhora não tinha, mas soube que, família, é onde não temos medo de ser. Mesmo quando tropeçamos em perguntas difíceis.