Às manhãs felizes, de vestidos brancos, frescos, que a tia bordou
Vestiram-te o vestido branco, fresco, que a tia bordou. Deixaram-te descalça, porque ias descalçar-te. O chão está quente como a tua alma. Refrescas-te no meio das flores e da terra molhada. Foi regada a mangueira na sombra da manhã, que ainda é menina como tu.
De cócoras, observas as formigas a fugirem dos pequenos rios que a rega formou. Umas em fila, outras desnorteadas numa correria desbotada. Se fosses formiga, eras das que corria sem destino.
“‘vó, porque é que as formigas correm?”
“Porque têm pressa.”
“Eu também tenho pressa, ‘vó.”
E corrias. À volta do quintal e da cana que segurava o estendal. Imaginavas que os canteiros eram trapézios, e percorria-los num equilíbrio tosco, imaginando que se caísses, era uma queda sem fim. Paravas, de repente, junto ao ralo. Olhavas a flor que se formava no cimento húmido, o Sol a fazer desaparecer as imagens que a água desenhou.
Penduravas-te no portão e pedias que te empurrassem, para lá e para cá, num embalo que não adormece a vontade.
“Não faças isso, que me dás cabo do portão.”
“Estou a voar, avô.”
E inclinavas a cabeça para trás, a apreciar a viagem, mesmo que a aragem não chegasse para ter nome de sopro.
Ao fim da manhã já tinhas mais pedrinhas presas nos pés, que horas no dia. Sentavas-te no degrau de mármore gelado, empoleiravas um pé no joelho oposto, e esfregavas a poeira que te passava para as mãos, e que acabava, inevitavelmente, no vestido branco, fresco, que a tia bordou.
Antes que te ralhassem, anunciavas:
"'vó, sujei-me a brincar!"
Que nunca ninguém condene a liberdade de uma manhã feliz.