O meu senhor do adeus
Havia quem fosse à missa aos domingos, nós íamos a casa dos meus avós. Não era pergunta que se fizesse.
"Onde é que vais domingo?"
A resposta era sempre a mesma, e o caminho também. Ladeira acima, até ao bairro que me criou e sustentou as raízes.
Chegávamos sempre tarde. Umas vezes o meu avô fazia o favor de esperar por nós. Outras, a maioria, cumprimentava-nos de pano da loiça entalado no colarinho.
"Então vêm jantar? Desculpem lá, mas fui começando."
A minha avó trazia as batatas fritas e a carne grelhada no carvão, a pingar manteiga e limão.
"Vão comer que isto arrefece."
Sentávamo-nos todos, e todos tinham o seu lugar cativo à mesa. O meu foi onde aprendi a diferença entre o lado esquerdo e o direito: o braço mais próximo da televisão era o direito.
Depois vinha a política, o gelado e as anedotas.
Eram almoços, em voz alta, que se desdobravam em lache e escorriam pela tarde, preguiçosos a antecipar a semana. Às vezes, eram almoços que anoiteciam.
"Vamos embora?"
"Vamos."
E ninguém se mexia. Um que dormia a sesta, outra que conversava com a vizinha. E eu que absorvia tudo, como quem adivinha que, um dia, os almoços deixariam de existir.
À hora do até amanhã, a minha avó ficava-se pela cozinha a lavar a loiça que a preguiça adiou. O meu avô, não. Vestia o casaco, como se se fosse embora também, saía connosco e parava junto ao muro. Entrávamos no carro com despedidas repetidas, como agora se faz ao telefone.
"Adeus. Adeus. Adeus."
"Vá para dentro, que está frio"
E ele deixava-se estar. Braço levantado num aceno infinito.
"Adeus."
Ficava a vê-lo a ficar mais pequeno, mão no ar a balançar, até desaparecer na primeira curva.
Agora, que os domingos não o têm, acabaram também os almoços, a carne grelhada a pingar manteiga, o braço direito colado à televisão, e as tardes a tropeçarem na noite. Mas se fechar os olhos, ele continua lá. Mão no ar, braço a balouçar.
"Adeus. Adeus. Adeus."