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Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Hoje passei por casa

Fui levar as compras à casa da minha avó, e deixei-me estar a conversar. Ela não percebe tudo, acho que nem ouve tudo, mas sorri a tudo. Dá palmadinhas nas pernas, como quem diz "vá, isso também vai passar". E eu continuo. Num quase monólogo. Uma enxurrada de "ais" e "tu vê lá", que arranco da alma e lhe deito nas mãos. O que faz depois com eles, não sei. Mas deixam de estar no meu campo de visão, aninhados no meu peito, a pesarem-me toneladas e a colarem-me ao chão. 

"Queres almoçar, filha?", e ela sabe que não quero, mas é a pergunta e o cuidado que me alimentam.

Depois, mostra-me vestidas, as camisolas de malha que lhe levei. Lembro-me das vezes em que íamos à feira de mãos dadas, e me comprava roupa. Chegadas a casa, era a primeira coisa que fazia.

"'vó, fico bem?"

"Ai, que coisa mais linda, filha."

A minha avó foi muito boa a desviar-me dos receios e a ensinar-me o amor próprio. Sempre encolheu os ombros às dores menores, às vezes até às assim-assim, porque isto é passagem e ela sabe disso.

Colocou-me, desde pequenina, no caminho certo para, pelo menos, viver sem muitas angústias, muitos "ai jesus". Mas quem pegou no volante fui eu e o caminho foi sendo diferente do que poderia ter sido.

Sou menos Júlia do que gostaria, mas gosto que tenha tido a Júlia a regar-me as raízes. No meio das tempestades, há-de sobrar alguma Júlia em mim.

Pediste-me calma e vinte anos depois eu dormi

Lembro-me de me pedires calma, enquanto não conseguias encontrar a tua. Andavas da sala para a cozinha, mãos a bater uma na outra, como se faz quando não sabemos o que fazer. E eu insistia nas certezas absolutas que se têm na adolescência e dizia que não aguentava mais, que nunca traria tanta dor colada a mim, nem a sopraria noutros peitos que já padecessem também.

Abanavas a cabeça, mais triste que desiludido, enquanto, de voz embargada, dizias que não era culpa de ninguém. Que ninguém escolhia sofrer assim. Acontecia, como acontecem outros acasos infelizes. Depois baixavas os olhos, fitavas o chão, derrotado. Porque tu percebias, mas não esperavas que ninguém percebesse.

Agora, sozinha no escuro, enquanto o ar me faltava e desabava de dentro para fora, como maré que enche, sussurraste-me a calma que me pediste tanta vez. Vi-te, mãos a bater uma na outra, como se as minhas dores te doessem em toda a parte, além do corpo que já não és. 

Ouço-te e compreendo. Porque já não tenho certezas absolutas, e aprendi que ninguém escolhe sofrer assim. Ninguém anseia ter de ansiar que o ar chegue, nem que os músculos baixem a guarda e permitam que o corpo descanse.

Sinto a respiração a voltar ao normal, e o peito percebe que afinal tem todo o ar do mundo à disposição. O corpo relaxa, como um soldado que vê a bandeira branca e sabe que a guerra acabou. Os olhos pesam, e sei que vou poder dormir, embalada pelos teus pedidos de calma de há vinte anos. 

Às vezes acho que percebias, porque também tu eras mar revolto. Talvez por isso tenhas escolhido o rio.

Eu vou por ali

"Se a morte vier por aqui, eu vou por ali. Mas sei que, um dia, vamos ter de nos encontrar."

Sempre que o meu avô dizia isto, eu imaginava uma encruzilhada. Ele e uma figura preta, de foice na mão, ficavam frente a frente, como que a ponderar um cumprimento. Depois um ia pela esquerda, outro pela direita. Fosse, como fosse, ele chegava sempre a casa, e eu achava que aquele era um cumprimento que nunca se iria fazer.

Não sei em que altura me apercebi da efemeridade da vida. Morriam pessoas à minha volta, mas nunca nada morria em mim. Era gente de outras gentes, choros que não me molhavam o colo. Um dia tive medo. Então, mas é assim? Vive-se uma vida, ama-se alguém para sempre, e depois ela vai-se embora? 

O meu avô foi a primeira pessoa que perdi, e fez todo o sentido. Ensinou-me tanta coisa durante a vida, porque pararia depois da morte?

Cada vez que o peito aperta e é difícil viver, penso nele e na encruzilhada, e escolho a vida. 

Hoje, como sempre, vou por ali.

O dia em que a empatia casou

Quando a filha da vizinha se casou, foi um acontecimento. O bairro estava habituado a flores e dores, mas os laços nos carros, os folhos e as gravatas, nunca tinham sido para ali chamados.

Eu queria um vestido laranja, sem cerimónias. Então, a minha mãe comprou-me um vestido branco, com mais rendas que as colchas das minhas tias. Saia rodada, e mangas em balão. Parecia os caramelos que o meu pai me trazia de Espanha, mas pior.

"Não faças essa cara. Isso é bordado inglês, depois dá para levares para a escola."

Ia rir-me, mas vi que ela estava a falar a sério, e deixei de achar graça.

Quando fomos, à tarde, comprar os fatos dos meus avós, íamos dois. Eu e o meu burro amarrado, ainda à conta da toilette. O meu avô comprou um fato castanho, que havia de usar pelo resto da vida, a cada cerimónia que o justificasse. A minha avó comprou um fato saia e casaco azulão. Não havia ninguém para obrigá-la a vestir um abajur.

Na sapataria, a mesma que me condenou a umas sandálias e meias brancas, a minha avó comprou umas sandálias azuis, de salto alto. Invejei-lhe a sorte, e passadas as festividades, passei a andar com elas por casa.

O barulho do salto nos mosaicos brancos, faziam sentir-me importante. Alta, ainda que desengonçada. Se fosse a minha avó nunca as tirava.

"Ó 'vó, porque é que nunca usas estas sandálias? São tão lindas."

"Ferem-me os pés."

Acho que foi a primeira vez que percebi, que nos sapatos dos outros, por mais bonitos que sejam, só eles sabem o quanto custa andar.

Quero saber

Revirei-me do avesso, despi-me de dentro para fora. Quero saber de onde vem isto de sentir tanto. Em demasia, para o pouco que um só peito suporta. Quero saber. Quem me tornou cativa do meu coração. A contar-lhe batidas, anseios, corridas. Ao menos que me fizessem maior. Ou dividissem as penas por mais prisioneiros. 

Fiz contas ao que tenho, e sobrou-me saudade. É o troco que se leva quando se sente. E eu já disse que sinto muito. Não tenho porta-moedas para tanto sobejo. Às vezes, deixo-as cair. Copiosamente, como chuva em dezembro. Depois resto-me a mim para as apanhar, secar, guardar.

Viver cá dentro é conviver com tudo o que foi, e tudo o que será. Estou cansada de não ter espaço definitivo no tempo. Quero saber o agora. 

Quero saber. 

 

Está tudo bem

Sei que estás acordada, apesar das horas. Amanhã tens escola, devias descansar. Deixa de olhar as cortinas, até ter passado tanto tempo, que as formas vão mudando de forma. E se apagasses a luz? Esse livro encostado ao candeeiro, para fazer sombra, não é igual à paz de um quarto escuro. Deixa de olhar o abajur e fingir que é um acordeão a embalar-te as noites. Fecha só os olhos.

Sei que não queres dormir, apesar do sono te pesar as pálpebras, e o cansaço te minar o corpo pequeno. Larga os livros que fazem pilha ao lado da cama. Podem fazer-te companhia fechados, despojados da tua atenção. Fecha os olhos e inventa uma história feliz. Diferente das que te contas todos os dias. Descansa.

Eu sei. Eu sei que queres velar o corredor escuro, para antecipar a escuridão. Que o medo atenuado pela luz, é medo à mesma e não te deixa dormir. Eu sei que contas os segundos, num dueto perfeito com os ponteiros do relógio. Como se contar o tempo, fizesse o tempo passar mais rápido. Pára. Por favor, fecha os olhos. Está tudo bem. São muitas noites mais tarde, e está tudo bem.

 

Um copo de tinto e saudade

Havia cavalos no Tejo, a refrescarem um dia de verão. Pessoas na rua, a fazerem dela o que ela era antigamente. A brisa era quente, como o calor daquela gente. Ao canto, sentado num muro branco, a condizer com a camisa, estavas tu. Cabelo ainda negro, como as azeitonas que apanhávamos nos finais de tarde, de cada outono. 

"Não chego lá, avô. Não chego!"

Continuavas a tarefa comigo às cavalitas. Mais azeitonas no chão, que na saca. Mais amor, sempre.

Estavas, à conversa, debaixo da única sombra que existia. Rias. Muito e alto. Não me viste e não fez mal. Encheste o copo de vinho e brindaste à vida.

Cada vez que o peito aperta e tudo aflige e dói, esperas que durma e apareces. Tu e o copo de tinto. A lembrar-me que quando ele está vazio, somos nós que o temos de encher. À sombra de um dia de Sol, na margem do rio que somos, nas gargalhadas antigas de um amor que é para sempre.

Até ao próximo brinde.

 

Se puderes, desculpa-me

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Desculpa.

Devias ter podido dormir sem o peso de ouvir tudo o que a noite grita. Eras pequena, sem tamanho para o medo que te habitava. Então, ele engoliu-te, misturou-se em ti até serem a mesma coisa. De luz acesa, porque o escuro desafiava-te a coragem, fingias que lias enquanto pedias. Pedias que a manhã chegasse tranquila, mesmo que amanhecesses exausta.

Desculpa.

Devias ter podido brincar sem saber que coisas más acontecem. E rir, e correr, e estar em ti sem pensar que as pessoas vão embora, e que choram e que há coisas cruéis dentro delas, que não são culpa tua. Não tinhas culpa. Ouviste? Nunca tiveste culpa.

Desculpa.

Devias ter podido crescer a saber o teu tamanho. Já eras tão grande, mesmo quando a altura não combinava. Deviam ter-te contado coisas boas sobre ti, para, quando daquela vez que te disseram que eras nada, saberes que te mentiam. Mentiram-te, porque eras tudo. As pessoas têm medo de pessoas que são tudo.

Desculpa.

Devias ter podido viver para ti, sem a sentença de cuidar. Porque se não cuidasses iam embora, porque se não te desses e te esgotasses nos outros, ficavas sem os outros e sem ti. E depois? O que é se faz quando não somos?

Desculpa. 

A ti. A mim. A nós, que sou só eu. Desculpa. 

Se caíres, não te demores

"Ai, minha rica filha."

Era assim, de sobressalto na voz e mãos na cabeça, como quem vê a desgraça a passar-lhe rente ao peito, que a minha avó reagia quando me via cair.

Com mais ou menos sangue, mais ou menos lágrimas, o aparato era igual. Nem maior, nem mais pequeno.

"Ai, minha rica filha."

Corria até mim, levantava-me, sacudia-me o vestido, e limpava-me as feridas, se as havia. Depois voltava serena ao que estava a fazer, enquanto anunciava que aquilo não era nada e eu, que fosse à minha vida.

Foi assim pelos anos fora. Condoída por me ver sofrer, mas logo pronta a desfazer os nós que às vezes eu própria emaranhava. É um desapego apegado de quem sabe que tudo se perde, e não há tempo a perder.

Cada vez que me desiquilibro e esfolo os joelhos da alma na vida, ouço-lhe o grito, e sei que, a seguir, vai ficar tudo bem.

Um. Dois. Três.

Uma noite destas, enroscada na ponta da cama, tremia. A desejar que fosse dia, dei por mim a dar três palmadinhas na perna. 

Quando era pequena, e o colo da minha avó ainda me albergava inteira, era assim que me recebia. Um, dois, três. Três pancadinhas. Demasiado fortes para me embalarem, mas que, sem chegarem a magoar, me serenavam.

Durante toda a vida, e até hoje, que já não tenho tamanho para o tamanho que o colo dela tem, é assim que quebra os meus silêncios, mesmo que continue calada.

Mãos encolhidas pela idade que estica, chega-se a mim com um sorriso e cumpre o ritual. Uma espécie de trilogia de amor, a contar-me, três vezes, que há-de ficar tudo bem. Mesmo que agora esteja tudo mal.

Um. Dois. Três.

 

 

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