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Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Hoje passei por casa

Fui levar as compras à casa da minha avó, e deixei-me estar a conversar. Ela não percebe tudo, acho que nem ouve tudo, mas sorri a tudo. Dá palmadinhas nas pernas, como quem diz "vá, isso também vai passar". E eu continuo. Num quase monólogo. Uma enxurrada de "ais" e "tu vê lá", que arranco da alma e lhe deito nas mãos. O que faz depois com eles, não sei. Mas deixam de estar no meu campo de visão, aninhados no meu peito, a pesarem-me toneladas e a colarem-me ao chão. 

"Queres almoçar, filha?", e ela sabe que não quero, mas é a pergunta e o cuidado que me alimentam.

Depois, mostra-me vestidas, as camisolas de malha que lhe levei. Lembro-me das vezes em que íamos à feira de mãos dadas, e me comprava roupa. Chegadas a casa, era a primeira coisa que fazia.

"'vó, fico bem?"

"Ai, que coisa mais linda, filha."

A minha avó foi muito boa a desviar-me dos receios e a ensinar-me o amor próprio. Sempre encolheu os ombros às dores menores, às vezes até às assim-assim, porque isto é passagem e ela sabe disso.

Colocou-me, desde pequenina, no caminho certo para, pelo menos, viver sem muitas angústias, muitos "ai jesus". Mas quem pegou no volante fui eu e o caminho foi sendo diferente do que poderia ter sido.

Sou menos Júlia do que gostaria, mas gosto que tenha tido a Júlia a regar-me as raízes. No meio das tempestades, há-de sobrar alguma Júlia em mim.

O meu senhor do adeus

Havia quem fosse à missa aos domingos, nós íamos a casa dos meus avós. Não era pergunta que se fizesse.

"Onde é que vais domingo?"

A resposta era sempre a mesma, e o caminho também. Ladeira acima, até ao bairro que me criou e sustentou as raízes. 

Chegávamos sempre tarde. Umas vezes o meu avô fazia o favor de esperar por nós. Outras, a maioria, cumprimentava-nos de pano da loiça entalado no colarinho.

"Então vêm jantar? Desculpem lá, mas fui começando."

A minha avó trazia as batatas fritas e a carne grelhada no carvão, a pingar manteiga e limão. 

"Vão comer que isto arrefece."

Sentávamo-nos todos, e todos tinham o seu lugar cativo à mesa. O meu foi onde aprendi a diferença entre o lado esquerdo e o direito: o braço mais próximo da televisão era o direito.

Depois vinha a política, o gelado e as anedotas. 

Eram almoços, em voz alta, que se desdobravam em lache e escorriam pela tarde, preguiçosos a antecipar a semana. Às vezes, eram almoços que anoiteciam. 

"Vamos embora?"

"Vamos."

E ninguém se mexia. Um que dormia a sesta, outra que conversava com a vizinha. E eu que absorvia tudo, como quem adivinha que, um dia, os almoços deixariam de existir.

À hora do até amanhã, a minha avó ficava-se pela cozinha a lavar a loiça que a preguiça adiou. O meu avô, não. Vestia o casaco, como se se fosse embora também, saía connosco e parava junto ao muro. Entrávamos no carro com despedidas repetidas, como agora se faz ao telefone. 

"Adeus. Adeus. Adeus."

"Vá para dentro, que está frio"

E ele deixava-se estar. Braço levantado num aceno infinito.

"Adeus."

Ficava a vê-lo a ficar mais pequeno, mão no ar a balançar, até desaparecer na primeira curva.

Agora, que os domingos não o têm, acabaram também os almoços, a carne grelhada a pingar manteiga, o braço direito colado à televisão, e as tardes a tropeçarem na noite. Mas se fechar os olhos, ele continua lá. Mão no ar, braço a balouçar.

"Adeus. Adeus. Adeus."

 

 

Às manhãs felizes, de vestidos brancos, frescos, que a tia bordou

Vestiram-te o vestido branco, fresco, que a tia bordou. Deixaram-te descalça, porque ias descalçar-te. O chão está quente como a tua alma. Refrescas-te no meio das flores e da terra molhada. Foi regada a mangueira na sombra da manhã, que ainda é menina como tu.

De cócoras, observas as formigas a fugirem dos pequenos rios que a rega formou. Umas em fila, outras desnorteadas numa correria desbotada. Se fosses formiga, eras das que corria sem destino.

“‘vó, porque é que as formigas correm?”
“Porque têm pressa.”
“Eu também tenho pressa, ‘vó.”

E corrias. À volta do quintal e da cana que segurava o estendal. Imaginavas que os canteiros eram trapézios, e percorria-los num equilíbrio tosco, imaginando que se caísses, era uma queda sem fim. Paravas, de repente, junto ao ralo. Olhavas a flor que se formava no cimento húmido, o Sol a fazer desaparecer as imagens que a água desenhou.

Penduravas-te no portão e pedias que te empurrassem, para lá e para cá, num embalo que não adormece a vontade.

“Não faças isso, que me dás cabo do portão.”
“Estou a voar, avô.”

E inclinavas a cabeça para trás, a apreciar a viagem, mesmo que a aragem não chegasse para ter nome de sopro.

Ao fim da manhã já tinhas mais pedrinhas presas nos pés, que horas no dia. Sentavas-te no degrau de mármore gelado, empoleiravas um pé no joelho oposto, e esfregavas a poeira que te passava para as mãos, e que acabava, inevitavelmente, no vestido branco, fresco, que a tia bordou.

Antes que te ralhassem, anunciavas:

"'vó, sujei-me a brincar!"

Que nunca ninguém condene a liberdade de uma manhã feliz.

Natal passado, presente

É véspera de Natal.

Abro a porta, ao final da tarde. A avó dorme no silêncio de uma casa construída a várias vozes. Pouso o bacalhau e o bolo rei na mesa que nos acolheu tantas vezes, e espreito o quarto, vazio do meu avô. A cama está feita desde que partiu, como se desmanchá-la, fosse desmachar memórias e afectos. Sinto muitos olhos  em mim. Estão por toda a parte, emoldurados no tempo em momentos perfeitos. Sento-me, e fecho os meus.

É cedo e está escuro. Chove. Engana-se o frio com camisas de flanela e camisolas de lã. As luzes da cozinha estão acesas a par com os bicos do fogão. Há batatas por descascar e arroz doce por decorar. A vizinha trouxe couves que a horta dispensou e desejos de uma noite feliz.

No quarto, um alguidar acolhe a massa dos sonhos, aconchegada com um cobertor laranja. O pinheiro ilumina a sala enquanto abriga os presentes empilhados há dias, sobreviventes à curiosidade. A mesa desdobra-se e fica maior. Insuficiente no tamanho, mas sempre suficiente na boa vontade. Improvisam-se bancos onde o amor é regra e joga-se à bola no quintal, porque é Natal e hoje o avô não se importa.

A avó conta os pratos. O tio conta histórias. Cheira a fritos e a bacalhau. As vozes atropelam-se e enchem a casa. Abre-se caminho para as travessas, atribuem-se lugares ao acaso e abrem-se as garrafas de vinho. Jantamos juntos numa casa pequena que acolhe o mundo. O meu mundo.

Abro olhos.

Sei que é Natal, mas a mesa está vazia e as luzes apagadas. Os estores estão corridos, e o tio não tem histórias para contar. É Natal, mas o fogão não arde e a vizinha não bateu à porta. Não cheira a fritos e o vinho está fechado. Bem sei, é Natal, mas o avô não apareceu vestido a preceito e o alguidar dos sonhos está vazio. A bola está guardada a um canto, e a avó deixou de contar os pratos. 

Fecho a porta com cuidado e devagar, como quem tranca um tesouro.

Levo o Natal no peito.

 

Fiz favas com metáforas

Cada vez que o almoço eram favas guisadas, a minha avó fazia-me ovos estrelados com salsichas, e o meu avô fazia-me a mesma pergunta de sempre.

"Já provaste? Como é que sabes que não gostas se ainda não provaste?"

Depois, contava-me o seu historial com as favas. 

"Quando era miúdo fugia delas. Agora gosto. A idade muda muita coisa. Aprende-se a gostar, e gostamos de maneira diferente."

A minha história com as favas era outra. As sacas que o meu avô trazia do campo para descascarmos, eram o meu Natal em abril. A minha avó dava-me meia dúzia de vagens, um alguidar e o meu banquinho de madeira. Depois sentava-se num banco de cozinha, a fazer pontaria  ao alguidar, e a conversar com o meu avô sobre coisas que não me interessavam. Às vezes vinha o filho da vizinha ajudar, e, nessa altura, começava o despique, para ver quem ia primeiro à fava.

Hoje, quando o almoço são favas, já não as troco por ovos estrelados com salsichas. Juro que vejo o meu avô à mesa, pano da loiça entalado no colarinho, copo de vinho na mão, e aquele sorriso de quem bem me avisou. 

"A idade muda muita coisa. Aprende-se a gostar, e gostamos de maneira diferente." 

Nas favas e na vida.

 

O dia em que a empatia casou

Quando a filha da vizinha se casou, foi um acontecimento. O bairro estava habituado a flores e dores, mas os laços nos carros, os folhos e as gravatas, nunca tinham sido para ali chamados.

Eu queria um vestido laranja, sem cerimónias. Então, a minha mãe comprou-me um vestido branco, com mais rendas que as colchas das minhas tias. Saia rodada, e mangas em balão. Parecia os caramelos que o meu pai me trazia de Espanha, mas pior.

"Não faças essa cara. Isso é bordado inglês, depois dá para levares para a escola."

Ia rir-me, mas vi que ela estava a falar a sério, e deixei de achar graça.

Quando fomos, à tarde, comprar os fatos dos meus avós, íamos dois. Eu e o meu burro amarrado, ainda à conta da toilette. O meu avô comprou um fato castanho, que havia de usar pelo resto da vida, a cada cerimónia que o justificasse. A minha avó comprou um fato saia e casaco azulão. Não havia ninguém para obrigá-la a vestir um abajur.

Na sapataria, a mesma que me condenou a umas sandálias e meias brancas, a minha avó comprou umas sandálias azuis, de salto alto. Invejei-lhe a sorte, e passadas as festividades, passei a andar com elas por casa.

O barulho do salto nos mosaicos brancos, faziam sentir-me importante. Alta, ainda que desengonçada. Se fosse a minha avó nunca as tirava.

"Ó 'vó, porque é que nunca usas estas sandálias? São tão lindas."

"Ferem-me os pés."

Acho que foi a primeira vez que percebi, que nos sapatos dos outros, por mais bonitos que sejam, só eles sabem o quanto custa andar.

No primeiro dia de escola

Era setembro, e eu sabia escrever as letras do meu nome. A minha avó dizia para me deixarem brincar, mas eu já estava perdida entre cadernos e canetas, e se a escola fosse em casa, podia começar já. O meu avô comprou-me uma mochila da Ambar, na loja da Dona Nana. Era roxa e verde, e custou-lhe cinco contos. E o miúdo da vizinha estava avisado para olhar por mim. 

A manhã chegou devagar, mas mais depressa do que todas as outras. As rolas cantavam para me despertar, e a cortina branca e rendilhada, fazia questão de não fintar a luz, para iluminar tudo o que era. Foi a primeira vez que não me quis levantar.

O avô já tinha saído, e a avó já tinha bebido o café. O dia corria igual, banal, mas estava tudo diferente. Foi nessa tarde, a subir a encosta que ia dar à escola, com a minha mochila roxa e verde às costas, que o mundo deixou de ser só flores e cimento quente, figos caídos e pombos corridos. Descobri que o mundo era maior. Mas o meu era melhor.

 

A porta do meu coração

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É uma porta antiga, mas ninguém diria. Tem no centro uma ranhura para o correio, que deixava as cartas ensopadas no inverno, e que sempre usei para chamar a minha avó. Os vidros castanhos, têm um jardim a condizer com o quintal. Flores que se entrelaçam num padrão que decorei com todos os sentidos e sentir. Reflectem nas paredes da casa todas as vezes que o Sol se impõe dono do dia, ou que um farol de um carro ilumina a noite.

Passou por ela tanta gente. Fecho os olhos e vejo-os entrar. 

"Ó Júlia, estão a bater à porta."

E ela vinha, mesmo estando mais longe. Apressada, contrariada, a limpar as mãos ao avental.

Depois abria a porta e o sorriso.

"Entre, entre!"

Porque era uma casa que mandava gente entrar, e ficar. E lhes preparava comida, e quantas camas fossem precisas. Era uma casa farta, que não se fartava. E mesmo quando o fardo pesava, se relevava e continuava. 

Foi porta porteira de más notícias a meio da madrugada, daquelas que nos deixam ali, entre a ombreira e o chão, e já pouco chão nos sobra. Mas depois recebeu boas novas. Os milagres que a vida nos dá às 20h12 de uma noite de outono.

Há uns tempos, a levantar a portinhola do correio para chamar por ela, nos segundos de silêncio que se seguiram antes de me responder, apercebi-me de que um dia aquela casa com voz se vai calar. A porta vai deixar de abrir por dentro, e as notícias vão ser dadas noutro lugar.

Quando a porta se trancar, há uma miúda que vai continuar a chocalhar a caixa do correio, e uma avó que lhe vai responder. Porque são assim as coisas ternas, eternas.

 

Era uma casa que se duplicava, e que à noite sussurrava amor

Quando aparecíamos todos ao mesmo tempo, éramos muitos, e a casa fazia o favor de duplicar. A mesa desdobrava-se noutra e albergava-nos sem excepção. Pratos e copos desavindos, e uma ou outra colher a servir de garfo. Os ovos faziam par com as salsichas, e as batatas fritas empapadas em óleo, repousavam em guardanapos de papel, até a avó dar ordem.

"Vá, filhos, toca a comer."

Havia um que não gostava da gema, e outro que não gostava da clara. Havia sempre algum a abusar da coca-cola, e outro a controlar quantos copos a menos esse ia beber amanhã. 

"Hoje fico no lugar do avô."

Dava sempre discussão, como se a cadeira do avô nos fizesse maiores, melhores. Como se dali se visse o mundo todo, e um bocadinho mais além.

A noite chegava devagar, como se não quisesse incomodar tanta luz com escuridão. Então, havia banhos de par em par, pijamas improvisados, canecas de café com leite, e bolachas Maria barradas com manteiga Planta. 

Éramos cinco para uma cama de corpo e meio, e eu imaginava sempre algum a ser serrado em dois, mas nunca eu. No chão de madeira velha, a avó empilhava cobertores até conseguirmos fingir que tínhamos um colchão. Dois apertavam-se na cama, outros três no soalho. Conversávamos baixinho, num riso que se segreda e uma felicidade que se abafa, mas não se contém.

Era quando iam adormecendo, um a um, que eu me mantinha acordada para os ouvir.

No quarto que guardava a porta de casa, no silêncio dos netos que se renderam ao sono, os meus avós falavam num sussurro doce e indecifrável. As luzes do candeeiro de rua a iluminar parte do corredor, os ponteiros do relógio da sala a embalar a noite, e eles. As vozes baixinhas a contar histórias que nunca soube quais eram.

Fechava os olhos e deixava-me adormecer. Até hoje, ninguém escreveu balada mais doce, que a melodia dos meus avós a conversarem na noite.

Dois miúdos, um aniversário e uma faca de cozinha

1 de junho de 1988.

A entrada da casa da vizinha era uma espécie de terraço que desaguava numa cozinha. Havia uma parreira que trepava pelas paredes e abraçava-se lá em cima, a fazer sombra a quem lá parasse.  A porta  era escudada por umas fitas de plástico vermelho, onde eu gostava de me enrolar. Diziam que era para afastar as moscas, mas era pouco eficaz a afastar-me a mim.

"Não te pendures, que isso cai. E larga isso, olha as moscas."

Naquele dia, as fitas estavam arredadas, o que me fez pensar que um bocadinho de moscas não fazia mal a ninguém. Penduraria-me mais vezes. No chão, uma imensa toalha de piquenique, eu, o aniversariante, e um balde de Playmobil. Era dia de festa, e cheirava a bolos.

De vez em quando, passava pela mesa grande, improvisada com ripas de madeira, e esquivava-me para a cozinha. Queria ver a vizinha a bater claras em castelo, e a tapar os buracos dos bolos com tampas de tupperware, porque ficavam mais bonitos.

"Esse é de quê? Eu não gosto de chantilly. Posso rapar? Ele faz mais um ano que eu, sabias?"

Sabia, que o pariu.

O dia ia longo, e um choro aflito estremeceu as parreiras. Quem costumava chorar era eu, ele não, mas tinha razão. Na tentativa de deixar careca um dos bonecos, cerrou-lhe os dentes para lhe arrancar o cabelo, e ficou com o lábio entalado. Ele gritava e o lábio inchava, e ele gritava ainda mais.

Na pressa de ver o rapaz despachado para a própria festa de aniversário, a vizinha pegou na maior faca de cozinha que encontrou e foi, decidida, resolver a questão. Quatro olhos arregalaram-se. Os dele e os meus. Houve um silêncio que encheu o terraço, até que ele gritou:

"Chama a Júlia!"

E eu chamei. 

Primeiro riu-se, porque ela ri muito e aquilo tinha graça. Riu-se dos quatro lábios que ele parecia ter, e da vizinha, desnorteada, ainda de faca na mão. Depois, devagar, e sei lá como, desentalou-lhe o lábio, devolveu o cabelo ao boneco e o boneco ao balde. Ajeitou a saia, riu mais um bocadinho e despediu-se com um "Até já, e não te pendures nas fitas".

Foi nesse dia quente de junho, à sombra de uma parreira, na doce calmaria que segue sempre uma tempestade, que percebi: a minha avó era de toda a gente.

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