Pediste-me calma e vinte anos depois eu dormi
Lembro-me de me pedires calma, enquanto não conseguias encontrar a tua. Andavas da sala para a cozinha, mãos a bater uma na outra, como se faz quando não sabemos o que fazer. E eu insistia nas certezas absolutas que se têm na adolescência e dizia que não aguentava mais, que nunca traria tanta dor colada a mim, nem a sopraria noutros peitos que já padecessem também.
Abanavas a cabeça, mais triste que desiludido, enquanto, de voz embargada, dizias que não era culpa de ninguém. Que ninguém escolhia sofrer assim. Acontecia, como acontecem outros acasos infelizes. Depois baixavas os olhos, fitavas o chão, derrotado. Porque tu percebias, mas não esperavas que ninguém percebesse.
Agora, sozinha no escuro, enquanto o ar me faltava e desabava de dentro para fora, como maré que enche, sussurraste-me a calma que me pediste tanta vez. Vi-te, mãos a bater uma na outra, como se as minhas dores te doessem em toda a parte, além do corpo que já não és.
Ouço-te e compreendo. Porque já não tenho certezas absolutas, e aprendi que ninguém escolhe sofrer assim. Ninguém anseia ter de ansiar que o ar chegue, nem que os músculos baixem a guarda e permitam que o corpo descanse.
Sinto a respiração a voltar ao normal, e o peito percebe que afinal tem todo o ar do mundo à disposição. O corpo relaxa, como um soldado que vê a bandeira branca e sabe que a guerra acabou. Os olhos pesam, e sei que vou poder dormir, embalada pelos teus pedidos de calma de há vinte anos.
Às vezes acho que percebias, porque também tu eras mar revolto. Talvez por isso tenhas escolhido o rio.