Fui levar as compras à casa da minha avó, e deixei-me estar a conversar. Ela não percebe tudo, acho que nem ouve tudo, mas sorri a tudo. Dá palmadinhas nas pernas, como quem diz "vá, isso também vai passar". E eu continuo. Num quase monólogo. Uma enxurrada de "ais" e "tu vê lá", que arranco da alma e lhe deito nas mãos. O que faz depois com eles, não sei. Mas deixam de estar no meu campo de visão, aninhados no meu peito, a pesarem-me toneladas e a colarem-me ao chão.
"Queres almoçar, filha?", e ela sabe que não quero, mas é a pergunta e o cuidado que me alimentam.
Depois, mostra-me vestidas, as camisolas de malha que lhe levei. Lembro-me das vezes em que íamos à feira de mãos dadas, e me comprava roupa. Chegadas a casa, era a primeira coisa que fazia.
"'vó, fico bem?"
"Ai, que coisa mais linda, filha."
A minha avó foi muito boa a desviar-me dos receios e a ensinar-me o amor próprio. Sempre encolheu os ombros às dores menores, às vezes até às assim-assim, porque isto é passagem e ela sabe disso.
Colocou-me, desde pequenina, no caminho certo para, pelo menos, viver sem muitas angústias, muitos "ai jesus". Mas quem pegou no volante fui eu e o caminho foi sendo diferente do que poderia ter sido.
Sou menos Júlia do que gostaria, mas gosto que tenha tido a Júlia a regar-me as raízes. No meio das tempestades, há-de sobrar alguma Júlia em mim.
Para chegar atravessa-se uma rampa íngreme. Como se quem lá passa, já não levasse carrego suficiente no peito. Há que ter pernas e coração fortes. Ou, pelo menos, um par de ombros alheios, que sirvam de amparo a almas desamparadas.
É quando se faz aquela curva, onde começam escadas e preces, que se abre o mundo. Os muros rendilhados a muralha, denunciam-lhe o nome com que o baptizaram. Castelo. Onde o Tejo é rei, e tudo o resto lhe beija a margem.
Há um banco de madeira nova, assente em cimento velho. A árvore que lhe dá sombra, inclina-se cansada, ou sedenta da água que tem à frente, mas que nunca alcança. Quem lá se calha a sentar, sabe que repousa numa metáfora.
Sento-me a sentir o presente. Guarnapos de papel, escritos a caneta azul, cobrem-me as pernas. Atrás de mim os mortos a repetirem a várias vozes, que o passado não muda. A terra revolta-se, as flores trocam-se, e enfeitam mármores de várias formas. Mas a forma que a vida foi, é igual. À minha frente, o rio a correr adiante, como tem de ser. A contar-me que vamos onde temos de ir, e é melhor irmos serenos.
Há guardanapos de papel, com frases soltas, por toda a parte. Histórias espalhadas com o vento, misturadas com as folhas, com as sombras. Os mortos a fazerem guarda de honra ao presente, e o futuro à espera de ser escrito.
Às vezes fixo um ponto na parede e fico a olhá-lo, como se me visse. A altura é a minha, mas mais altiva, e os dedos finos têm mais firmeza. O cabelo alourado não tem pontas soltas, e sabe bem com que linhas se amarra. O nariz é igual, pequeno, mas ascendente, como se fosse o primeiro a chegar, quando chego. Trago debaixo do braço folhas soltas, escritas à mão. Letra perfeita, tinta preta. Detesto tinta preta.
"Sabia que ia chegar o dia."
É tudo o que consigo ler, por entre um cotovelo e uma costela. Suponho que chegue. Que aquele ponto na parede seja espelho de outra parede qualquer. Que me espera. Que me reflecte inteira, com medos e sonhos, desmedidos na mesma medida.
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