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Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

Life With Júlia

por Susana C. Fernandes

O meu senhor do adeus

Havia quem fosse à missa aos domingos, nós íamos a casa dos meus avós. Não era pergunta que se fizesse.

"Onde é que vais domingo?"

A resposta era sempre a mesma, e o caminho também. Ladeira acima, até ao bairro que me criou e sustentou as raízes. 

Chegávamos sempre tarde. Umas vezes o meu avô fazia o favor de esperar por nós. Outras, a maioria, cumprimentava-nos de pano da loiça entalado no colarinho.

"Então vêm jantar? Desculpem lá, mas fui começando."

A minha avó trazia as batatas fritas e a carne grelhada no carvão, a pingar manteiga e limão. 

"Vão comer que isto arrefece."

Sentávamo-nos todos, e todos tinham o seu lugar cativo à mesa. O meu foi onde aprendi a diferença entre o lado esquerdo e o direito: o braço mais próximo da televisão era o direito.

Depois vinha a política, o gelado e as anedotas. 

Eram almoços, em voz alta, que se desdobravam em lache e escorriam pela tarde, preguiçosos a antecipar a semana. Às vezes, eram almoços que anoiteciam. 

"Vamos embora?"

"Vamos."

E ninguém se mexia. Um que dormia a sesta, outra que conversava com a vizinha. E eu que absorvia tudo, como quem adivinha que, um dia, os almoços deixariam de existir.

À hora do até amanhã, a minha avó ficava-se pela cozinha a lavar a loiça que a preguiça adiou. O meu avô, não. Vestia o casaco, como se se fosse embora também, saía connosco e parava junto ao muro. Entrávamos no carro com despedidas repetidas, como agora se faz ao telefone. 

"Adeus. Adeus. Adeus."

"Vá para dentro, que está frio"

E ele deixava-se estar. Braço levantado num aceno infinito.

"Adeus."

Ficava a vê-lo a ficar mais pequeno, mão no ar a balançar, até desaparecer na primeira curva.

Agora, que os domingos não o têm, acabaram também os almoços, a carne grelhada a pingar manteiga, o braço direito colado à televisão, e as tardes a tropeçarem na noite. Mas se fechar os olhos, ele continua lá. Mão no ar, braço a balouçar.

"Adeus. Adeus. Adeus."

 

 

Ecos que sobram

Quando ele chegava, a voz já tinha chegado primeiro. Inconfundível. Alegre, na mais profunda tristeza.

"Ó tia, não se arranjam uns trocos?"

Ela encolhia os ombros, abanava a cabeça e os olhos brilhavam-lhe. Aquele brilho que denuncia as lágrimas. Chamava-o à cozinha. Abria a gaveta direita da mesa, onde guardava folhas de papel, canetas e uma carteira pequena. Tirava uma nota e punha-la nas mãos. 

"Quando é que ganhas juízo, filho?"

"Agora? Agora é tarde!", dizia a rir.

Nunca percebi aquele contraste. A luz que lhe vinha colada, e a sombra que descia pelo rosto e lhe cobria o corpo. 

Sentava-se no banco da cozinha. Cerveja numa mão, cigarro na outra. 

"Não fumes ao pé da menina." 

E ele piscava-me o olho, levantava-se e acabava o cigarro lá fora. Ao pé de mim.

Eram tardes de anedotas ao despique. Ora o meu avô, ora ele. Não percebia a graça, mas achava engraçada aquela alegria toda. Depois, punha-se em pé num sobressalto, como se, de repente, fosse preciso noutro sítio qualquer. Dizia que eu estava bonita, e arrumava o banco debaixo da mesa.

"Dá cá um beijinho ao primo."

Fazia-se à estrada já escura, num silêncio que não lhe assentava bem. Haveria de voltar outras vezes, cada vez menos, até não voltar nunca mais. 

Não fosse o eco eterno da sua voz, e ninguém diria que tinha passado por lá.

Está tudo bem

Sei que estás acordada, apesar das horas. Amanhã tens escola, devias descansar. Deixa de olhar as cortinas, até ter passado tanto tempo, que as formas vão mudando de forma. E se apagasses a luz? Esse livro encostado ao candeeiro, para fazer sombra, não é igual à paz de um quarto escuro. Deixa de olhar o abajur e fingir que é um acordeão a embalar-te as noites. Fecha só os olhos.

Sei que não queres dormir, apesar do sono te pesar as pálpebras, e o cansaço te minar o corpo pequeno. Larga os livros que fazem pilha ao lado da cama. Podem fazer-te companhia fechados, despojados da tua atenção. Fecha os olhos e inventa uma história feliz. Diferente das que te contas todos os dias. Descansa.

Eu sei. Eu sei que queres velar o corredor escuro, para antecipar a escuridão. Que o medo atenuado pela luz, é medo à mesma e não te deixa dormir. Eu sei que contas os segundos, num dueto perfeito com os ponteiros do relógio. Como se contar o tempo, fizesse o tempo passar mais rápido. Pára. Por favor, fecha os olhos. Está tudo bem. São muitas noites mais tarde, e está tudo bem.

 

Se puderes, desculpa-me

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Desculpa.

Devias ter podido dormir sem o peso de ouvir tudo o que a noite grita. Eras pequena, sem tamanho para o medo que te habitava. Então, ele engoliu-te, misturou-se em ti até serem a mesma coisa. De luz acesa, porque o escuro desafiava-te a coragem, fingias que lias enquanto pedias. Pedias que a manhã chegasse tranquila, mesmo que amanhecesses exausta.

Desculpa.

Devias ter podido brincar sem saber que coisas más acontecem. E rir, e correr, e estar em ti sem pensar que as pessoas vão embora, e que choram e que há coisas cruéis dentro delas, que não são culpa tua. Não tinhas culpa. Ouviste? Nunca tiveste culpa.

Desculpa.

Devias ter podido crescer a saber o teu tamanho. Já eras tão grande, mesmo quando a altura não combinava. Deviam ter-te contado coisas boas sobre ti, para, quando daquela vez que te disseram que eras nada, saberes que te mentiam. Mentiram-te, porque eras tudo. As pessoas têm medo de pessoas que são tudo.

Desculpa.

Devias ter podido viver para ti, sem a sentença de cuidar. Porque se não cuidasses iam embora, porque se não te desses e te esgotasses nos outros, ficavas sem os outros e sem ti. E depois? O que é se faz quando não somos?

Desculpa. 

A ti. A mim. A nós, que sou só eu. Desculpa. 

Dois miúdos, um aniversário e uma faca de cozinha

1 de junho de 1988.

A entrada da casa da vizinha era uma espécie de terraço que desaguava numa cozinha. Havia uma parreira que trepava pelas paredes e abraçava-se lá em cima, a fazer sombra a quem lá parasse.  A porta  era escudada por umas fitas de plástico vermelho, onde eu gostava de me enrolar. Diziam que era para afastar as moscas, mas era pouco eficaz a afastar-me a mim.

"Não te pendures, que isso cai. E larga isso, olha as moscas."

Naquele dia, as fitas estavam arredadas, o que me fez pensar que um bocadinho de moscas não fazia mal a ninguém. Penduraria-me mais vezes. No chão, uma imensa toalha de piquenique, eu, o aniversariante, e um balde de Playmobil. Era dia de festa, e cheirava a bolos.

De vez em quando, passava pela mesa grande, improvisada com ripas de madeira, e esquivava-me para a cozinha. Queria ver a vizinha a bater claras em castelo, e a tapar os buracos dos bolos com tampas de tupperware, porque ficavam mais bonitos.

"Esse é de quê? Eu não gosto de chantilly. Posso rapar? Ele faz mais um ano que eu, sabias?"

Sabia, que o pariu.

O dia ia longo, e um choro aflito estremeceu as parreiras. Quem costumava chorar era eu, ele não, mas tinha razão. Na tentativa de deixar careca um dos bonecos, cerrou-lhe os dentes para lhe arrancar o cabelo, e ficou com o lábio entalado. Ele gritava e o lábio inchava, e ele gritava ainda mais.

Na pressa de ver o rapaz despachado para a própria festa de aniversário, a vizinha pegou na maior faca de cozinha que encontrou e foi, decidida, resolver a questão. Quatro olhos arregalaram-se. Os dele e os meus. Houve um silêncio que encheu o terraço, até que ele gritou:

"Chama a Júlia!"

E eu chamei. 

Primeiro riu-se, porque ela ri muito e aquilo tinha graça. Riu-se dos quatro lábios que ele parecia ter, e da vizinha, desnorteada, ainda de faca na mão. Depois, devagar, e sei lá como, desentalou-lhe o lábio, devolveu o cabelo ao boneco e o boneco ao balde. Ajeitou a saia, riu mais um bocadinho e despediu-se com um "Até já, e não te pendures nas fitas".

Foi nesse dia quente de junho, à sombra de uma parreira, na doce calmaria que segue sempre uma tempestade, que percebi: a minha avó era de toda a gente.

Se caíres, não te demores

"Ai, minha rica filha."

Era assim, de sobressalto na voz e mãos na cabeça, como quem vê a desgraça a passar-lhe rente ao peito, que a minha avó reagia quando me via cair.

Com mais ou menos sangue, mais ou menos lágrimas, o aparato era igual. Nem maior, nem mais pequeno.

"Ai, minha rica filha."

Corria até mim, levantava-me, sacudia-me o vestido, e limpava-me as feridas, se as havia. Depois voltava serena ao que estava a fazer, enquanto anunciava que aquilo não era nada e eu, que fosse à minha vida.

Foi assim pelos anos fora. Condoída por me ver sofrer, mas logo pronta a desfazer os nós que às vezes eu própria emaranhava. É um desapego apegado de quem sabe que tudo se perde, e não há tempo a perder.

Cada vez que me desiquilibro e esfolo os joelhos da alma na vida, ouço-lhe o grito, e sei que, a seguir, vai ficar tudo bem.

Os meus avós são um banquinho de madeira

Adorava comer. E comia como os adultos, entre os adultos. O meu avô fez-me um banquinho de madeira que colocava em cima de um cadeirão. O mesmo que lhe deu amparo nos últimos anos de vida. Eu esticava os braços e ele pegava-me ao colo. Eu achava que ele devia ser muito forte para me fazer voar, desde o chão, até aterrar no banquinho. 

A minha avó pousava-me o prato à frente. Carne cortada como se fossem dados de brincar, massinhas e cenouras, para os olhos ficarem bonitos. Confiava-me o garfo e a tarefa. Sabia que não era preciso mandar-me comer tudo.

Um dia, levou-me de autocarro até à vila.

"Vamos ao Doutor e depois compramos uma revista."

Não me pareceu mau negócio.

"A menina está gorda. Não a podem deixar comer da maneira que quer. A menina está gorda. Tem de fazer dieta. A menina está mesmo, mesmo gorda. Não quer ser feia, pois não?"

E eu não queria, mas já me sentia. Gorda e pequenina. Tanto, que desejei ter o meu avô a lançar-me no ar até ao banquinho que me fazia crescer.

Não me lembro das despedidas, nem do plano de dieta para deixar de ser a menina gorda que agora era. Lembro-me da mão da minha avó a entrelaçar a minha, para descermos as escadas íngremes que iam dar ao passeio, e de me puxar depois, em passo firme, para a porta ao lado. Uma pastelaria.

"Vá, filha. Agora escolhe o bolo que quiseres, e que nunca ninguém te diga que és feia, tu estás a ouvir ?"

Ainda hoje as bolas de berlim têm o sussurro da minha avó: "tu estás a ouvir?"

Foi aí que percebi que os meus avós foram um banquinho de madeira. Feitos para me elevar, quando acho que o tamanho me falta.

Estou presa como um lírio num botão

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O quintal da minha avó tinha canteiros fartos, num emaranhado de espécies que coloria a casa e a vida. No canteiro do lado esquerdo, assim que se pisava a rua, existia um ramo imenso de lírios brancos. Fazia dos botões microfones, do cimento o meu palco, e dançava ao som da música que só eu ouvia na minha cabeça. Rodava, repetidamente, sobre o meu corpo num desfecho antecipado pelo meu avô, que me sacudia depois as pedrinhas dos joelhos e me mandava seguir, que é o que se faz quando a contra-ordenação não é grave.

Agora os canteiros sobram terra vazia, e há, aqui e ali, uma flor ou outra, como que a avisar quem passa, que nem tudo por lá morreu. Os lírios mudaram de cor e agora são amarelos, numa espécie de ode à inocência que se perdeu, entre os meus concertos de improviso, e o agora, que me parece tão ou mais improvisado.

Pedi um lírio à minha avó e coloquei-o na cabeceira. Reparei ao anoitecer que se fechou num botão.

Então fico eu e o lírio. Os dois, fechados na noite e em nós. Na esperança mastigada que a luz de uma manhã qualquer nos venha libertar, e eu volte, enfim, a cantar. 

As boas famílias medem-se em revistas Maria

Não sabia bem onde começava e terminava a família. Diziam que o sangue era fórmula, mas nunca me serviu nos cálculos.

Às vezes chegavam visitas de surpresa. Tinham me dito que surpresas eram coisas boas, mas eu quando abria presentes não ficava com o ar desacorçoado da minha avó, quando abria a porta.

"Dá cá um beijinho à tia."

E eu ia beijar os pés da mesa, que não conhecia a senhora e não queria abrir precedentes. É que atrás dela, vinha outra.

"Lá está ela a brincar às escondidas."

Não estava a brincar, não. 

"Oh 'vó, posso ir à vizinha?"

E corria passeio abaixo. Abria o portão verde e entrava sem me anunciar. Não gritamos presente, cada vez que entramos em casa. Sentava-me na sala a ler revistas, à espera da minha vez de jogar naquela coisa que se ligava à televisão.

Um dia, de revista Maria na mão, entretive-me a ler o consultório sentimental. Achava muito estranho se escrever para uma revista a perguntar se se estava grávida, em vez de ir ao médico. Mas isso era eu. Entre várias questões, saltou-me à vista uma em particular, que me intrigou.

"Oh vizinha, o que é um orgasmo? Está aqui uma senhora a dizer que não tem."

O silêncio que se fez, só foi ultrapassado em dimensão pela gargalhada que lhe seguiu. Não aprendi, naquele dia, o que era aquilo que aquela senhora não tinha, mas soube que, família, é onde não temos medo de ser. Mesmo quando tropeçamos em perguntas difíceis.

Corredores estreitos fazem bons ciclistas

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Nas traseiras da casa da minha avó existe um corredor muito estreito. Tão estreito, que de braços abertos tocamos as duas paredes rugosas. Foi nesse corredor que passei grande parte da minha infância. A correr, a esfolar joelhos, a encarnar o Mourinho e a dizer aos meus primos como é que deviam jogar futebol. 

Certo Natal, os meus pais ofereceram-me uma bicicleta. Com rodinhas, que a propensão para esfolar joelhos já era inata, e não precisava de incentivo. Passava as tardes, para cá e para lá, na minha bicicleta azul, sem cestinho. Ainda hoje não lhes perdoei a falta do cesto. Onde é que uma mulher guarda os pertences quando vai dar uma volta ao corredor? 

Cada vez que chegava ao fim do caminho tinha de sair da bicicleta, levantá-la no ar, girá-la com cuidado para não lascar a tinta nas paredes, e seguir viagem, numa inversão de marcha feita à mão. Era mesmo, mesmo estreito.

Um dia, num acto de rebelião contra a opressão das rodinhas, chamei o filho da vizinha.

"Arranca-me lá isto daqui."

Embriegado pela sensação de poder que uma chave de fendas conferia a um miúdo de 8 anos, nem questionou se o que iria arrancar a seguir, seria a minha cara do chão. Fez-me a vontade. Ajudou-me a equilibrar-me, agarrou o selim até ordem contrária, empurrou-me ao de leve, e lá fui eu. 

Não demorou para percebermos que, com rodinhas ou sem rodinhas, despistar-me era uma missão impossível. Se me desiquilibrasse para a esquerda, uma parede agarrava-me. Se me desiquilibrasse para a direita, a outra parede também. Era o pesadelo de qualquer dentista.

Hoje, aquele corredor parece-me ainda mais pequeno, encolhido pelo tempo que passou por ele, e lhe levou as crianças e a tinta, que descasca a cada chuvada mais forte. São só duas paredes que ligam vidas vizinhas, e que estarão sempre ligadas à minha. É também uma metáfora perfeita do que aquele lugar reprensenta para mim.

Por muito que a vida me desiquilibre, ou que eu me desiquilibre com ela, ninguém ali me deixa cair. E se as forças me faltarem, braços não faltarão para me empurrarem em frente.

É um corredor estreito. Desagua numa imensurável largura de amor.

 

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