Abro a porta, ao final da tarde. A avó dorme no silêncio de uma casa construída a várias vozes. Pouso o bacalhau e o bolo rei na mesa que nos acolheu tantas vezes, e espreito o quarto, vazio do meu avô. A cama está feita desde que partiu, como se desmanchá-la, fosse desmachar memórias e afectos. Sinto muitos olhos em mim. Estão por toda a parte, emoldurados no tempo em momentos perfeitos. Sento-me, e fecho os meus.
É cedo e está escuro. Chove. Engana-se o frio com camisas de flanela e camisolas de lã. As luzes da cozinha estão acesas a par com os bicos do fogão. Há batatas por descascar e arroz doce por decorar. A vizinha trouxe couves que a horta dispensou e desejos de uma noite feliz.
No quarto, um alguidar acolhe a massa dos sonhos, aconchegada com um cobertor laranja. O pinheiro ilumina a sala enquanto abriga os presentes empilhados há dias, sobreviventes à curiosidade. A mesa desdobra-se e fica maior. Insuficiente no tamanho, mas sempre suficiente na boa vontade. Improvisam-se bancos onde o amor é regra e joga-se à bola no quintal, porque é Natal e hoje o avô não se importa.
A avó conta os pratos. O tio conta histórias. Cheira a fritos e a bacalhau. As vozes atropelam-se e enchem a casa. Abre-se caminho para as travessas, atribuem-se lugares ao acaso e abrem-se as garrafas de vinho. Jantamos juntos numa casa pequena que acolhe o mundo. O meu mundo.
Abro olhos.
Sei que é Natal, mas a mesa está vazia e as luzes apagadas. Os estores estão corridos, e o tio não tem histórias para contar. É Natal, mas o fogão não arde e a vizinha não bateu à porta. Não cheira a fritos e o vinho está fechado. Bem sei, é Natal, mas o avô não apareceu vestido a preceito e o alguidar dos sonhos está vazio. A bola está guardada a um canto, e a avó deixou de contar os pratos.
Fecho a porta com cuidado e devagar, como quem tranca um tesouro.
Revirei-me do avesso, despi-me de dentro para fora. Quero saber de onde vem isto de sentir tanto. Em demasia, para o pouco que um só peito suporta. Quero saber. Quem me tornou cativa do meu coração. A contar-lhe batidas, anseios, corridas. Ao menos que me fizessem maior. Ou dividissem as penas por mais prisioneiros.
Fiz contas ao que tenho, e sobrou-me saudade. É o troco que se leva quando se sente. E eu já disse que sinto muito. Não tenho porta-moedas para tanto sobejo. Às vezes, deixo-as cair. Copiosamente, como chuva em dezembro. Depois resto-me a mim para as apanhar, secar, guardar.
Viver cá dentro é conviver com tudo o que foi, e tudo o que será. Estou cansada de não ter espaço definitivo no tempo. Quero saber o agora.
Para chegar atravessa-se uma rampa íngreme. Como se quem lá passa, já não levasse carrego suficiente no peito. Há que ter pernas e coração fortes. Ou, pelo menos, um par de ombros alheios, que sirvam de amparo a almas desamparadas.
É quando se faz aquela curva, onde começam escadas e preces, que se abre o mundo. Os muros rendilhados a muralha, denunciam-lhe o nome com que o baptizaram. Castelo. Onde o Tejo é rei, e tudo o resto lhe beija a margem.
Há um banco de madeira nova, assente em cimento velho. A árvore que lhe dá sombra, inclina-se cansada, ou sedenta da água que tem à frente, mas que nunca alcança. Quem lá se calha a sentar, sabe que repousa numa metáfora.
Sento-me a sentir o presente. Guarnapos de papel, escritos a caneta azul, cobrem-me as pernas. Atrás de mim os mortos a repetirem a várias vozes, que o passado não muda. A terra revolta-se, as flores trocam-se, e enfeitam mármores de várias formas. Mas a forma que a vida foi, é igual. À minha frente, o rio a correr adiante, como tem de ser. A contar-me que vamos onde temos de ir, e é melhor irmos serenos.
Há guardanapos de papel, com frases soltas, por toda a parte. Histórias espalhadas com o vento, misturadas com as folhas, com as sombras. Os mortos a fazerem guarda de honra ao presente, e o futuro à espera de ser escrito.
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