Ecos que sobram
Quando ele chegava, a voz já tinha chegado primeiro. Inconfundível. Alegre, na mais profunda tristeza.
"Ó tia, não se arranjam uns trocos?"
Ela encolhia os ombros, abanava a cabeça e os olhos brilhavam-lhe. Aquele brilho que denuncia as lágrimas. Chamava-o à cozinha. Abria a gaveta direita da mesa, onde guardava folhas de papel, canetas e uma carteira pequena. Tirava uma nota e punha-la nas mãos.
"Quando é que ganhas juízo, filho?"
"Agora? Agora é tarde!", dizia a rir.
Nunca percebi aquele contraste. A luz que lhe vinha colada, e a sombra que descia pelo rosto e lhe cobria o corpo.
Sentava-se no banco da cozinha. Cerveja numa mão, cigarro na outra.
"Não fumes ao pé da menina."
E ele piscava-me o olho, levantava-se e acabava o cigarro lá fora. Ao pé de mim.
Eram tardes de anedotas ao despique. Ora o meu avô, ora ele. Não percebia a graça, mas achava engraçada aquela alegria toda. Depois, punha-se em pé num sobressalto, como se, de repente, fosse preciso noutro sítio qualquer. Dizia que eu estava bonita, e arrumava o banco debaixo da mesa.
"Dá cá um beijinho ao primo."
Fazia-se à estrada já escura, num silêncio que não lhe assentava bem. Haveria de voltar outras vezes, cada vez menos, até não voltar nunca mais.
Não fosse o eco eterno da sua voz, e ninguém diria que tinha passado por lá.