As ruas estão mais largas, como se quem as projetou soubesse que há que dar espaço à saudade. Deixá-la espalhar-se por todos os cantos e becos, e ficar a vê-la a desaguar no rio.
Quem se senta na esplanada não sabe que o seu corpo assenta em pedaços da minha história. Fica ali, na leveza de um gole de cerveja, no mesmo lugar onde o meu avô me levava pela mão para comprar pão.
- Trouxeste o teu avô a passear?
E eu sorria, envergonhada, a tentar desaparecer atrás dele.
Era uma algazarra boa. Vozes altas que não me assustavam. Gargalhadas vindas de sítios que eu não compreendia. Palmadas nas costas e pancadas na nuca, como faziam os miúdos da escola.
O largo da praça não tem largura suficiente para as memórias que carrego comigo.
O canto do Fragoso agora é um espaço vazio, forrado a jornais que debitam notícias antigas. Espreito e não vejo a minha avó debruçada ao balcão a escolher camisas.
É uma volta sem volta, esta de passear com vidas atreladas. É que nunca a volta vai ser tão memorável como as outras voltas que se deram antes.
Fui levar as compras à casa da minha avó, e deixei-me estar a conversar. Ela não percebe tudo, acho que nem ouve tudo, mas sorri a tudo. Dá palmadinhas nas pernas, como quem diz "vá, isso também vai passar". E eu continuo. Num quase monólogo. Uma enxurrada de "ais" e "tu vê lá", que arranco da alma e lhe deito nas mãos. O que faz depois com eles, não sei. Mas deixam de estar no meu campo de visão, aninhados no meu peito, a pesarem-me toneladas e a colarem-me ao chão.
"Queres almoçar, filha?", e ela sabe que não quero, mas é a pergunta e o cuidado que me alimentam.
Depois, mostra-me vestidas, as camisolas de malha que lhe levei. Lembro-me das vezes em que íamos à feira de mãos dadas, e me comprava roupa. Chegadas a casa, era a primeira coisa que fazia.
"'vó, fico bem?"
"Ai, que coisa mais linda, filha."
A minha avó foi muito boa a desviar-me dos receios e a ensinar-me o amor próprio. Sempre encolheu os ombros às dores menores, às vezes até às assim-assim, porque isto é passagem e ela sabe disso.
Colocou-me, desde pequenina, no caminho certo para, pelo menos, viver sem muitas angústias, muitos "ai jesus". Mas quem pegou no volante fui eu e o caminho foi sendo diferente do que poderia ter sido.
Sou menos Júlia do que gostaria, mas gosto que tenha tido a Júlia a regar-me as raízes. No meio das tempestades, há-de sobrar alguma Júlia em mim.
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