Cada vez que o almoço eram favas guisadas, a minha avó fazia-me ovos estrelados com salsichas, e o meu avô fazia-me a mesma pergunta de sempre.
"Já provaste? Como é que sabes que não gostas se ainda não provaste?"
Depois, contava-me o seu historial com as favas.
"Quando era miúdo fugia delas. Agora gosto. A idade muda muita coisa. Aprende-se a gostar, e gostamos de maneira diferente."
A minha história com as favas era outra. As sacas que o meu avô trazia do campo para descascarmos, eram o meu Natal em abril. A minha avó dava-me meia dúzia de vagens, um alguidar e o meu banquinho de madeira. Depois sentava-se num banco de cozinha, a fazer pontaria ao alguidar, e a conversar com o meu avô sobre coisas que não me interessavam. Às vezes vinha o filho da vizinha ajudar, e, nessa altura, começava o despique, para ver quem ia primeiro à fava.
Hoje, quando o almoço são favas, já não as troco por ovos estrelados com salsichas. Juro que vejo o meu avô à mesa, pano da loiça entalado no colarinho, copo de vinho na mão, e aquele sorriso de quem bem me avisou.
"A idade muda muita coisa. Aprende-se a gostar, e gostamos de maneira diferente."
Não sabia bem onde começava e terminava a família. Diziam que o sangue era fórmula, mas nunca me serviu nos cálculos.
Às vezes chegavam visitas de surpresa. Tinham me dito que surpresas eram coisas boas, mas eu quando abria presentes não ficava com o ar desacorçoado da minha avó, quando abria a porta.
"Dá cá um beijinho à tia."
E eu ia beijar os pés da mesa, que não conhecia a senhora e não queria abrir precedentes. É que atrás dela, vinha outra.
"Lá está ela a brincar às escondidas."
Não estava a brincar, não.
"Oh 'vó, posso ir à vizinha?"
E corria passeio abaixo. Abria o portão verde e entrava sem me anunciar. Não gritamos presente, cada vez que entramos em casa. Sentava-me na sala a ler revistas, à espera da minha vez de jogar naquela coisa que se ligava à televisão.
Um dia, de revista Maria na mão, entretive-me a ler o consultório sentimental. Achava muito estranho se escrever para uma revista a perguntar se se estava grávida, em vez de ir ao médico. Mas isso era eu. Entre várias questões, saltou-me à vista uma em particular, que me intrigou.
"Oh vizinha, o que é um orgasmo? Está aqui uma senhora a dizer que não tem."
O silêncio que se fez, só foi ultrapassado em dimensão pela gargalhada que lhe seguiu. Não aprendi, naquele dia, o que era aquilo que aquela senhora não tinha, mas soube que, família, é onde não temos medo de ser. Mesmo quando tropeçamos em perguntas difíceis.
Era um bairro que fazia jus ao nome. Com vizinhos que se conheciam, e distribuíam ramos de salsa, que apanhavam das hortas, ou ofensas e promessas de "se te apanho mato-te".
No verão, ao final do dia, juntavam-se ao fresco, com o chão de cimento ainda a emanar calor.
Eles falavam de uma coisa que era o Governo, e desabafavam que "assim não vamos lá". Eu não percebia bem onde é que era suposto irmos, mas esperava que não fosse para ir agora, porque aquelas noites eram as minhas preferidas.
Elas falavam das vizinhas que não estavam, e iam rodando a protagonista conforme a ausência de cada uma. "Isto somos só nós a conversar, han!". Acho que foi o primeiro eufemismo da minha vida.
Debruçavam-se nos muros sem nunca pisarem propriedade privada. Espalhavam-se pelo passeio, à luz dos candeeiros, e contavam vida.
"Oh 'vó, posso comer um gelado?"
"Estás a fazer a digestão."
Odiava a digestão. Não me deixava fazer nada. Um dia parou e passei a dar-lhe valor.
Era um bairro, mesmo bairro. De casas baixas e pessoas altas. De portas sempre abertas, porque não se deixa a família na rua. De jogos de bola com pé descalço, e joelhos esfolados. De irmãos, que eram filhos únicos.
Sobra pouco bairro, do tanto que o bairro foi, mas se fechar os olhos ainda lá estou. O chão está quente, as vozes misturam-se com o som dos grilos, e a minha avó disse para eu comer o gelado, porque já fiz a digestão.
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