Trago um bairro comigo
Era um bairro que fazia jus ao nome. Com vizinhos que se conheciam, e distribuíam ramos de salsa, que apanhavam das hortas, ou ofensas e promessas de "se te apanho mato-te".
No verão, ao final do dia, juntavam-se ao fresco, com o chão de cimento ainda a emanar calor.
Eles falavam de uma coisa que era o Governo, e desabafavam que "assim não vamos lá". Eu não percebia bem onde é que era suposto irmos, mas esperava que não fosse para ir agora, porque aquelas noites eram as minhas preferidas.
Elas falavam das vizinhas que não estavam, e iam rodando a protagonista conforme a ausência de cada uma. "Isto somos só nós a conversar, han!". Acho que foi o primeiro eufemismo da minha vida.
Debruçavam-se nos muros sem nunca pisarem propriedade privada. Espalhavam-se pelo passeio, à luz dos candeeiros, e contavam vida.
"Oh 'vó, posso comer um gelado?"
"Estás a fazer a digestão."
Odiava a digestão. Não me deixava fazer nada. Um dia parou e passei a dar-lhe valor.
Era um bairro, mesmo bairro. De casas baixas e pessoas altas. De portas sempre abertas, porque não se deixa a família na rua. De jogos de bola com pé descalço, e joelhos esfolados. De irmãos, que eram filhos únicos.
Sobra pouco bairro, do tanto que o bairro foi, mas se fechar os olhos ainda lá estou. O chão está quente, as vozes misturam-se com o som dos grilos, e a minha avó disse para eu comer o gelado, porque já fiz a digestão.